Chico Buarque: Eu não daria tudo para ter feito música nenhuma de outro compositor. Mas existem músicas que amo. Gosto mais do que as minhas. Eu não gostaria de ter feito uma música alheia. É uma coisa que não me ocorre. Porque o maior prazer da música está exatamente no momento em que você a cria. Nunca mais vai ser a mesma coisa. Quando você ou repete nos shows, não vive a mesma sensação. Ignoro qual terá sido esse prazer em outro autor. Prefiro, então, sentir o prazer que sinto a cada composição minha, por menor que seja.
GMN: Você poderia, então, citar uma música de outro autor que você inveja?
Chico Buarque: Um milhão de músicas. Não tenho uma preferida, mas agora que você falou, me bateu uma na lembrança: “Águas de Março” – de Tom Jobim. É uma música que eu não diria que gostaria de ter feito, porque é impossível que eu fizesse uma música dessa. É outra cabeça. Mas é uma música da qual eu adoraria conhecer o prazer e o mecanismo da criação, assim como músicas de Noel Rosa, Cartola, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento. Recorro a um recurso: tenho parceiros que admiro muitíssimo – inclusive o próprio Tom. Ao me fazer parceiro, eu crio a música com eles. Ao fazer a letra para uma música alheia, eu estou me apropriando um pouco dessa música - que não é minha”.
GMN: Você diz que o futebol tem momentos de improviso e genialidade que nenhum artista consegue repetir. Mas em alguma de duas músicas você teve o sentimento de improviso que você só encontra no futebol?
Chico Buarque: “É possível encontrar algo semelhante ao futebol no jazz, na música instrumental. Alguma coisa pode acontecer enquanto você toca. Mas não sou improvisador. De qualquer forma, há no ato da criação momentos em que você parece iluminado. São jogadas que acontecem sem que você tenha pressentido. De repente, vem uma ideia. Você se pergunta: de onde veio? É o que acontece com o futebol: é como se o corpo recebesse uma luz repentina inexplicável.
GMN: Que música ou que verso despertou em você, na hora em que estava compondo, a emoção que você sente diante de um drible?
Chico Buarque: Você vai trabalhando,trabalhando,trabalhando em cada música, até que há um “clique”: aparece um verso ou algo na melodia que faz você pensar “isso é novo”, “não fui eu que fiz”. É como se fosse algo que viesse de fora.
GMN: Quando estava exilado na Itália, você teve contato com Garrincha. É uma página pouco conhecida da biografia de Chico Buarque. Vocês conversaram sobre futebol ou sobre música?
Chico Buarque: É óbvio que eu falava sobre futebol – e ele falava de música.... Acontece também com Pelé – que adora música. Mas Garrincha era muito musical. Tive um contato maior com ele em Roma. A gente acaba mesmo falando mais de música do que de futebol. Garrincha conhecia música muito mais do que eu imaginava antes. Gostava de João Gilberto. Eu imaginava que Garrincha gostasse de uma música mais simplória, mais ingênua, talvez. Mas não! Garrincha gostava da sofisticação de um João Gilberto.
GMN: Que tipo de comentário ele fazia sobre João Gilberto?
Chico Buarque: Garrincha comentava gravações, se referia a detalhes, lembrava de como João Gilberto cantava uma determinada música. Para me mostrar, Garrincha cantarolava – não muito bem – mas mostrava que tinha a lembrança das músicas de João Gilberto. Referia-se à maneira como João Gilberto cantava as músicas. João é um inventor. Não é um compositor. Talvez seja mais do que compositor, porque inventa a partir de uma música alheia. E Garrincha falava exatamente disso: a maneira como João Gilberto cantava – talvez uma cantiga mais conhecida que ele tivesse reinterpretado, como “Os Pés das Cruz”. Garrincha salientava a maneira como João Gilberto reinventava um samba.
GMN: É verdade que você dirigia automóvel para Garrincha na Itália?
Chico Buarque: Eu era o chofer de Garrincha. Ele jogava umas peladas – algumas remuneradas – na periferia de Roma. Ganhava um cachê. Eu é que levava Garrincha, no meu Fiat. Era impressionante. As pessoas paravam na rua. Garrincha era muito popular. Isso aconteceu entre 1969 e 1970. Garrincha já tinha parado de jogar há algum tempo. Oito anos já tinham se passado desde a Copa de 1962. Mas ele ainda era muito conhecido na Itália.
GMN: “Se você pudesse escolher entre ser um grande nome da Música Popular Brasileira e um grande craque da seleção, qual das duas profissões você escolheria?
Chico Buarque: Nunca escolhi sem músico. Quando eu pude – e quis escolher – aos quatorze, quinze anos de idade, eu quis ser jogador de futebol mesmo. Eu achava que poderia ser um bom jogador. Era uma ilusão. Mas eu tinha essa ilusão, na época, com bastante segurança. Tornei-me músico um pouco por acaso. Devo dizer que o sonho de ser um craque permaneceu na minha cabeça. Ainda hoje acredito que seja.
GMN: Se a gente for contar as músicas suas que tratam de futebol, vai ver que são poucas. Qual é a dificuldade em tratar de futebol?
Chico Buarque: Não é só música. Há pouca literatura tratando de futebol, há pouco cinema. Dá para entender por que há pouco futebol no cinema: é difícil reproduzir com imagens o que já é tão forte na vida real. Teoricamente, traduzir o futebol em palavras ou em música seria fácil do que em cinema. Prometo fazer mais umas duas ou três.
GMN: Você jogaria pelo Fluminense hoje?
Chico Buarque: Claro que jogaria! Tenho vaga naquele time.
GMN: Quando joga futebol, que posição você ocupa?
Chico Buarque: Jogo em todas. Mas sou mais de preparar o gol. Sou um centro-avante recuado.
GMN: Em 1978, você participou da campanha do então candidato ao senado Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo. Numa declaração publicada em 1998 em livro, Fernando Henrique diz que você é um crítico repetitivo. Como é que você recebeu essa crítica?
Chico Buarque: Achei engraçado no começo. Mas não dei a importância que às vezes dão. Parece que fiquei ofendido. Não. É normal, é natural que um político tenha opiniões políticas até a respeito de artistas. Diz o que interessa naquele momento. É da natureza de um político. Fernando Henrique sabe o que diz e tem o direito de gostar de quem quiser. Nunca imaginei que ele gostasse de mim. Achei divertida e engraçada a ênfase com que ele gosta de uma pessoa e pode deixar de gostar. Mas é a opinião de um político. Fernando Henrique diz que não gosta mais de mim. Antes, gostava.
GMN: O seu pai disse, num artigo, que você, quando era estudante, gostava de desenhar cidades. Havia sempre uma fonte no meio da praça, nas cidades que você desenhava. Você, que já foi estudante de arquitetura, ainda hoje desenha ou imagina alguma cidade nas horas vagas?
Chico Buarque: Desenho cidades enormes, gigantescas, com fontes, com praças, com nomes, com ruas. Quando não desenho, penso. Sonho muito com cidades. Os meus sonhos misturam cidades que conheço. Também sonho com cidades que não conheço e com cidades que imagino. São as melhores de todas.
GMN: Você batizou o seu time de futebol de campo de Politheama – que era o nome do seu time de futebol de botão. Que nomes você dá às suas cidades imaginárias?
Chico Buarque: Não vou contar. As cidades têm nomes. Mas não posso nem pronunciar aqui. Vou passar vergonha.
GMN: Por quê?
Chico Buarque: Porque são nomes que têm consoantes que nem existem. São idéias bobas.
GMN: Você tem a fama – falsa- de tímido e a fama – verdadeira – de arredio. Você não é de estar todo dia nos jornais ou na televisão. Qual é o maior incômodo que a fama traz? É o assédio dos fãs, a invasão de privacidade ou a curiosidade da imprensa?
Chico Buarque: Assédio de fãs, no meu caso, não existe, porque não ando cercado nem de óculos escuros. Ando naturalmente na rua. As pessoas não perturbam muito. Se você andar como uma pessoa qualquer, você fica sendo uma pessoa qualquer. As pessoas me reconhecem, dizem “olá, Chico, tudo bem?”. Não passa disso. Não vou dizer que é mau. É bom, é simpático, é gostoso. Não tenho nada contra.
GMN: Mas a imprensa incomoda você de vez em quando...
Chico Buarque: Quando quer, a imprensa incomoda.
GMN: É por isso que você dá tão poucas entrevistas e fala tão pouco com os repórteres?
Chico Buarque: Eu falo bastante. Falo mais do que devia. Já estou falando aqui há meia-hora com você! Mas é que não tenho tanto assunto. Tenho preguiça de falar. Gosto mais de fazer outras coisas.
GMN: Se você fosse chamado para escrever o verbete Chico Buarque de Holanda numa enciclopédia de música popular, qual seria a primeira frase?
Chico Buarque (rindo): Êpa! Não sei. Podia ser êpa.
GMN: Com interrogação ou com exclamação?
Chico Buarque: Com interrogação. A primeira palavra seria: êpa?
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