sábado, 6 de março de 2010

CONFRONTOS, do brasileiro Darcy Ribeiro.

Que é o Brasil entre os povos contemporâneos? Que são os brasileiros? Enquanto povo das Américas contrasta com os povos testemunhos, como o México e o altiplano andino, com seus povos oriundos de altas civilizações que vivem o drama de sua dualidade cultural e o desafio de sua fusão numa nova civilização.

Outro bloco contrastante é o dos povos transplantados, que representa nas Américas tão-só a reprodução de humanidades e de paisagens européias. Os Estados Unidos da América e o Canadá são de fato mais parecidos e mais aparentados com a África do Sul branca e com a Austrália do que conosco. A Argentina e o Uruguai, invadidos por uma onda gringa que lançou 4 milhões de europeus sobre um mero milhão que havia devassado o país e feito a independência, soterrando a velha formação hispano-índia, são outros transplantados. Só é de perguntar por que, com a economia igual e até mais rica de produção de cereais, de carnes e de lãs, não conseguem a prosperidade da Austrália e do Canadá, que se enriqueceram com muito menos? Será o velho Cromwell e a institucionalidade por ele criada, que ainda regem o norte, que fazem a diferença? Os outros latino-americanos são, como nós mesmos, povos novos, em fazimento.

Tarefa infinitamente mais complexa, porque uma coisa é reproduzir no além-mar o mundo insosso europeu, outra é o drama de refundir altas civilizações, um terceiro desafio, muito diferente, é o nosso, de reinventar o humano, criando um novo gênero de gentes, diferentes de quantas haja.

Se olhamos lá para fora, a África contrasta conosco porque vive ainda o drama de sua europeização, prosseguida por sua própria liderança libertária, que tem mais horror à tribalidade que sobrevive e ameaça explodir do que à recolonização. São ilusões! Se os índios sobreviventes do Brasil resistiram a toda a brutalidade durante quinhentos anos e continuam sendo eles mesmos, seus equivalentes da África resistirão também para rir na cara de seus líderes neoeuropeizadores. Mundos mais longínquos, como os orientais, mais maduros que a própria Europa, se estruturam na nova civilização, mantendo seu ser, sua cara.

Nós, brasileiros, nesse quadro, somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado.

Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na rünguendade.

Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros.

Um povo, até hoje, em ser, na dura busca de seu destino. Olhando-os, ouvindo-os, é fácil perceber que são, de fato, uma nova romanidade, uma romanidade tardia mas melhor, porque lavada em sangue índio e sangue negro.

Com efeito, alguns soldados romanos, acampados na península Ibérica, ali latinizaram os povos pré-lusitanos. O fizeram tão firmemente que seus filhos mantiveram a latinidade e a cara, resistindo a séculos de opressão de invasores nórdicos e sarracenos.

Depois de 2 mil anos nesse esforço, saltaram o mar-oceano e vieram ter no Brasil para plasmar a neo-romanidade que nós somos.
É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matrizes tão diferenciadas, os brasileiros são, hoje, um dos povos mais homogêneos lingüística e culturalmente e também um dos mais integrados socialmente da Terra. Falam uma mesma língua, sem dialetos. Não abrigam nenhum contingente reivindicativo de autonomia, nem se apegam a nenhum passado. Estamos abertos é para o futuro.

Nações há no Novo Mundo - Estados Unidos, Canadá, Austrália - que são meros transplantes da Europa para amplos espaços de além-mar. Não apresentam novidade alguma neste mundo. São excedentes que não cabiam mais no Velho Mundo e aqui vieram repetir a Europa, reconstituindo suas paisagens natais para viverem com mais folga e liberdade, sentindo-se em casa. É certo que às vezes se fazem criativos, reinventando a república e a eleição grega. Raramente. São, a rigor, o oposto de nós.

Nosso destino é nos unificarmos com todos os latino-americanos por nossa oposição comum ao mesmo antagonista, que é a América anglo-saxônica, para fundarmos, tal como ocorre na comunidade européia, a Nação Latino-Americana sonhada por Bolívar. Hoje, somos 500 milhões, amanhã seremos 1 bilhão. Vale dizer, um contingente humano com magnitude suficiente para encarnar a latinidade em face dos blocos chineses, eslavos, árabes e ngobritânicos na humanidade futura.

Somos povos novos ainda na luta para nos fazermos a nós mesmos como um gênero humano novo que nunca existiu antes. Tarefa muito mais difícil e penosa, mas também muito mais bela e desafiante.

Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e tropical. O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê- lo também por sua criatividade artística e cultural.

Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso auto-sustentado. Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra.

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