Paulo George – Você é carioca?
Zeca de Magalhães – Sim, mas moro na Bahia há 23 anos. Minha vó era baiana. Sou de uma família baiana, a família de minha vó era de São Francisco do Conde. Eu vim para Bahia com 19 anos. No Rio de Janeiro o pessoal sempre me perguntava: “Você trabalha em quê?” Eu dizia: “Sou poeta”. Aí eles insistiam, “Tudo bem, mas trabalha em quê?”. Quando eu cheguei aqui, a mesma pergunta, “Você trabalha em quê?”, e eu dizia, “Sou poeta”. Aqui... Digamos assim, eu vi que ser poeta era como se fosse uma autoridade, uma coisa de respeito. As pessoas me respeitavam por eu ser poeta. Talvez até por essa tradição da Bahia ter tido vários poetas de rua. Desde Gregório de Matos que a poesia está na rua. E ele nunca escreveu nada, sempre falava tudo. Ser poeta na Bahia é uma coisa muito forte. De Gregório à Cuíca de Santo Amaro, mais recentemente o grupo Poetas na Praça e toda essa juventude que na década de 70, 80 ia para rua. Não só os Poetas na Praça, mas o grupo Poema, o grupo Baldeação, diversos grupos de poesia tomando as ruas de Salvador, fazendo um monte de coisas, então sempre se teve respeito pelo poeta. O que me apaixonou na Bahia foi isso. Eu vim como um bocado de gente que vem passar o carnaval aqui, e acaba ficando. Hoje eu tenho família aqui, tenho 7 filhos, 4 baianos, e um neto baiano. Assim, de uma certa forma, voltei às minhas origens. Sempre cresci ouvindo histórias do recôncavo, casos de engenhos. Minha vó era de uma família tradicional, chamada família Bulcão, uma família que teve muitos engenhos, tipo aristocracia falida. Hoje não tem nada, mas já teve muita coisa. Eu sempre tive essas historias na cabeça. E minha vó falava: “Somos a única família branca da Bahia”, ela falava essa maluquice. E eu pensava, “Meu Deus do céu, isso não pode existir”. Vim para cá conhecer os Bulcão e todos são miscigenados, por conta dessa mistura mesmo. Coisas desse país e desse estado doido.
PG – Em princípio você ficou no recôncavo?
ZM – Fiquei em Salvador. E quando eu, em 1982, fui contratado pelo PT para organizar núcleos no interior do estado, eu conheci Irecê, Xique-Xique e, principalmente, Itajuípe e Icoaraci, onde morei muito tempo, trabalhando com grupos de jovens da igreja, para fundar núcleos do PT.
PG – Me fale um pouco sobre os Poetas na Praça.
ZM – Quando eu cheguei aqui já existia, começou em 1978. Através, basicamente, de três pessoas: Antonio Short, já falecido, Geraldo Maia e Eduardo Teles. Eles foram o cerne da coisa, a essência dos Poetas na Praça. Esse poder de movimentação, de botar as pessoas na rua, tudo isso. Por esse grupo, passaram mais de 70 poetas. Fui um desses. Nós nos encontrávamos todo dia, ao final da tarde na Praça da Piedade. Muita gente que tá bem aí foi do grupo: Araripe Junior, cineasta, Getulio, dono da Literarte, que era um ponto de encontro importante. Antes da praça ou depois, a gente ia conversar lá. Lá era a única livraria que vendia os nossos livrinhos na época. Ficava ali, na galeria do Edifício Santo Amaro, na Avenida Sete.
PG – Quando você participava do grupo, nessa época aí, você chegou a receber algum tipo de represália?
ZM – Eram os anos que começava a abertura. Mas todo Brasil fica sempre “a reboque”. As coisas acontecem no sul primeiro para, depois de 5 ou 6 anos, acontecerem por aqui. Hoje ainda acontece isso, mas é menor, pois a Bahia já tem uma indústria cultural muito grande. Sofremos diversos tipos de repressão, sim. Chegou a tal ponto que nós já fomos processados. Por que nós falávamos palavras de “baixo calão”, chulas. Eu como poeta acho que não existe nem palavra, nem palavrinha, nem palavrão. Existe o signo de comunicação. E o poeta é igual ao artesão, ao sapateiro, vai experimentando diversos tipos de couro para fazer uma bota, uma alpargata. Mesma coisa com a palavra é o poeta. Em 82, Figueiredo (João Batista) começou uma espécie de cruzada muito grande contra a pornografia. Nisso aí, fomos acusados por usar palavrões em nossos poemas. O que levou a polícia daqui a ter que prender poetas na rua. Acredito que eles estavam mais preocupados em prender bandidos, assaltos a banco, essas coisas. E aí, sobrou para eles esse papel constrangedor de prender poetas na rua. Analisando hoje, isso foi muito bom, pois por causa disso, cheguei a vender 4.000 mil exemplares de um livro meu na época, O Assassino. Um livro tipo cordel, bem simples. Depois que eu fui preso, saí no O Globo do Rio e dei entrevista na Tv Globo daqui. O livro estourou. O Getúlio vendia 20 a 30 livros meus por dia. Era barato como se fosse hoje em dia 2 reais.
PG – Quantos livros você já tem publicado?
ZM – No formato de cordel, sem ser literatura de cordel, entre 82 e 87 publiquei 13 livretos, com 10 poemas cada um. E diversos números de jornaizinhos. Teve o Panflema, panfletos que eram poemas, o Sucata, o Rato de Praia, entre outros. Nessa época já existiam vários grupos de poesias. Tinha os Poetas na Praça, tinha o Grupoema, o Baldeação, Kami Quase. E tinham muitas briguinhas, cada um no seu grupo. E eu achava isso ridículo. Eu e o Valente Júnior. Então, ele foi dos outros grupos. E o jornal Ratos de Praia era legal porque reunia poetas de todos esse grupos, foi ele quem rompeu com essa história de grupinhos. Eu fiquei com os Poetas na Praça de 79, quando eu conheci, até 84. Aí o grupo começou a tomar conotações político-partidárias que não me interessavam. Apesar de eu trabalhar no PT, esse trabalho era uma coisa. Agora, usar a arte do poema pra levantar bandeiras eu acho uma coisa muito perigosa. Desde aquela época eu não aceitava isso e jamais aceitei. Quando começaram a entrar pessoas ligadas ao MR-8, eu não vou citar nomes não, poetas que começaram a unir essas posições políticas ao grupo, poesia pelas Diretas, essas coisas assim, caí fora. Eu acho que a poesia é um instrumento político em si. Agora virar um instrumento partidário, a poesia perde e corre o risco de ficar uma coisa muito medíocre. Eu sempre fui contra isso.
PG – Voltando um pouco para sua época. Quais são as características daquela juventude que não vemos mais na juventude de hoje?
ZM – Eu acho a juventude sempre o grande lance. O jovem é aquele que estar por vir, que pode propor alguma coisa. Em tese seria isso. Fiquei muito chocado quando na época do Collor, estava saindo da juventude e entrando, digamos, na fase madura, com aquela manipulação de jovens de Caras Pintadas. Achei aquilo uma palhaçada, uma coisa muito medíocre, muito comandada, por um sistema de comunicação. Essa juventude agora lê muito, ao contrário do que e alguns escritores pensam. Eles não lêem os livros que os escritores publicam, mas você lê o tempo todo. Você está num mundo de uma informação áudio-visual. Você liga a TV, o computador, na rua vê um outdoor, tudo você lê. Tudo passa pelos seus olhos, tudo é leitura. Agora, coordenar essa leitura para uma atividade educativa é outra coisa. Voltando a questão dos jovens de ontem e de hoje, pois eu me perdi um pouco, na minha época nós tínhamos já uma coisa predeterminada contra a qual a gente tinha que lutar que era o cerceamento das liberdades básicas de um ser humano, o direito de pode falar. O jovem de hoje fala o que quiser, mas não pode fazer nada. É a ditadura econômica, diferente da ditadura da palavra.
PG – É, nós saímos da ditadura de tanques na rua para uma ditadura de informações. O jovem é muito exposto a isso tudo, as informações manipuladas...
ZM – Pois é, ele é exposto a isso tudo e não tem uma educação fundamental e formal que o prepare para isso, para poder analisar isso. É o trabalho que a gente faz aqui no CRIA, por exemplo. Eu dou aula de poesia. Na verdade estamos preparando o jovem para ter opinião crítica, poder de análise, para ele poder ler nas entrelinhas de um jornal uma notícia. A mídia é uma coisa muito enganosa. Aqui, por exemplo, essa briguinha do jornal A TARDE com o governo, quase uma briga pessoal de Cruz Rios com Antônio Carlos Magalhães. No fim, é tudo farinha do mesmo saco. São as elites que se entendem muito bem, resolvem nossa fome num banquete. Não tem nenhum anúncio do governo no A TARDE, porque está “brigadinha” com o governo. Mas, ao mesmo tempo o A TARDE não paga imposto nenhum, o CORREIO DA BAHIA até paga, ao menos tem os recibos dizendo que paga. São essas benesses que correm por baixo do pano e a gente é tratado como otário. É uma mídia de lugares marcados. Isso pro jovem é muito ruim, gera uma falsa informação.
PG – E a poesia hoje na Bahia?
ZM – É uma coisa maravilhosa. Aqui ela é feita com as falas do povo, com o “fale sério”, com gírias circunstanciais. Umas ficam outras vão, tudo isso é muito importante. Hoje na Bahia, nós vemos os poetas consagrados, como Capinam, ou poetas escondidos como Carlos Cunha, da Academia de Letras da Bahia, que é um grande poeta e lançou um livro agora. E gente nova sempre surgindo. Eu gosto muito de acompanhar a poesia das mulheres. Primeiro porque eu sou homem, sou um adorador de mulheres. Depois porque elas geram a vida, nos geram. Se diz hoje que a mulher sustenta a família, para mim sempre sustentou, mesmo sem ganhar dinheiro. Aqui no CRIA tem umas jovens ótimas, que escrevem muito bem. A Daniele, Tatiana, Débora. Umas meninas muito legais escrevendo. Alguns livros de poesia que me surpreenderam muito. Tem um livro de uma professora, Maria Antônia Ramos Coutinho e um outro de Bel Mascelani, muito bom, chamado Noturnas. Não desmerecendo os homens, mas como as mulheres são a fonte geradora da vida...
PG – E a fonte de inspiração de poesias também...
ZM – É...mas eu sou meio contra esse negócio de que a mulher é a musa, um negócio meio meloso. Como admirador de mulheres acho que a mulher é uma provocação maravilhosa para qualquer coisa. Eu acho que fonte de inspiração mesmo é a realidade. Acordar e tá chovendo, olhar o céu. A juventude é muito pulsante. Agora há de se ter cuidado, pois qualquer arrumador de versos vira poeta. Poesia é coisa muito mais séria. Carlos Drummond de Andrade tinha uma frase: “Se você tiver um sentimento, pelo amor de Deus, não escreva. Poesia não se faz com sentimento”. Os jovens começam a escrever com o sentimento. Para mim, poesia é a ciência da linguagem. Agora, é claro que quando você faz um poema, tem que despertar no leitor uma emoção, um valor estético. Não estética como um discurso, mas como um fato. Na sua etimologia que quer dizer sensações. Nada mais além. Tem que se ter um grande conhecimento de linguagem. É meio complicado, pois poesia não serve para nada. Quanto vale seu poema? Melhor vender banana, pois não há como dar valor a uma poesia. Agora, num mundo cheio de utilidade é bom você trabalhar com uma coisa que não serve para nada. É como uma escapatória, uma fuga. É boa uma coisa que você possa gozar, possa curtir, possa ficar despreocupado com ela. Pois, se é seu gozo, é, na verdade, o que mais lhe interessa. Você tem que fazer o que lhe dar prazer.
PG – Hoje em dia as pessoas acreditam mais no “ter”, do que no “ser”. Dão mais valor a coisas materiais. Como está o poeta nessa sociedade?
ZM – O poeta ainda é, graças a Deus, um eterno vagabundo, tomara que não mude isso! Um homem que não faz nada, por que ele faz uma coisa que não serve para nada. É para puro deleite. Quando cheguei aqui, fui muito respeitado por ser poeta...
PG – Hoje ainda continua assim?
ZM – Acho que sim. E toda mídia aqui reverencia o poeta. Nesse símbolo maior que foi Castro Alves. Não que eu ache ele o maior poeta de todos os tempos. É claro que um cara que começou a escrever com 11 anos, morreu aos 24, e deixou a obra que deixou tem seu valor. Depois que ele morreu, começou aquela grande cruzada abolicionista, com José do Patrocínio. Um jornal de norte a sul do país que em todos números tinha um poema de Castro Alves. Para mim, Fagundes Varela escrevia melhor, mas Castro Alves conseguiu ser o símbolo da liberdade. Entendo essa reverência muito positiva. Muito boa.
PG – E a poesia na existência humana?
ZM – É a minha última e única ilusão. Dentro do meu coração, como crença. Como algo com poder de transformação. É só através da poesia podemos mudar algo. A minha poesia é uma, a sua é outra e é isso que não nos deixa sermos pessoas robotizadas e pasteurizadas. Nessa sociedade de mercado. Que todo mundo veste com roupas da “C&A”, que todo mundo come Cheddar, que nem gosto de queijo tem. Ela garante a sua individualidade, e só uma pessoa que não é robotizada tem poder de transformação. Poder próprio concentrado no seu interior. Só assim podemos mudar algo.
PG – Somente assim, mexendo com sua auto-estima, podemos nos expor, nos expressar, tudo aquilo que sentimos. Não aceitando tudo que nos é imposto pela mídia.
ZM – Segundo dados deles mesmos, num país de 170 milhões de habitantes, 80 milhões que vivem de 1 a 6 salários mínimos e 50 milhões que vivem com menos de um salário mínimo, somente 40 milhões podem escolher o que comem. Eu não posso escolher o que como. Não tenho dinheiro para isso, sou professor. A classe média hoje não escolhe o que come, nem o que faz. Ela vive para comer, cagar e pagar contas. A maioria da nossa população vive assim hoje. Num mundo em que tudo é mercado, você torna-se robotizado, por que o jogo é esse.
PG – Hoje entro numa livraria e vejo um livro do Drummond, ou do Ferreira Gullar e você tem que desembolsar 20 a 30 reais para comprar o livro. Isso dificulta as pessoas a tomarem gosto pela leitura.
ZM – As pessoas gostam de ler. Não existe uma política traçada nesse país para mudar isso. Só existe a política de mercado. O livro é um objeto industrial, igual a um sabonete, um carro ou uma geladeira. Além de ser um objeto industrial, ele forma pessoas e devia ser tratado de maneira diferente. Para isso, tem que se ter vontade política. Nos países socialistas você tinha livros que, comparados aos dias de hoje, custariam 2 reais. Você vê às vezes a Folha de São Paulo vendendo livros a 1 real. O livro é um bem industrial que pode ser barato. Não é barato porque não existe uma política cultural traçada.
PG – Voltando ao que você falou sobre poesia e música. A música, hoje em dia, ficou meio pobre, não?
ZM – Não ficou pobre não. Ela entrou no mercado. Temos aí músicas belíssimas, mas antes temos que ver o que o mercado oferece para nós.
PG – O que te empurram pela goela...
ZM – Exato. As pessoas têm o objetivo de fazer sucesso, de ganhar dinheiro. E isso não pode ser objetivo e sim resultado de um trabalho. Vem o É o Tchan, vende 3 milhões de cópias, atinge o auge. Depois cai, vende 200 mil cópias. Aí, eles inventam outra coisa para vender. Ter oportunidade é uma coisa, ser oportunista é outra.
PG – As pessoas associam muito o sucesso com a vendagem. Teve vendagem, acha uma maravilha.
ZM – Isso é falso. Você vê Drummond. Ele teve quatro livros. E vendeu, numa época onde tínhamos cerca de 120 a 130 milhões de habitantes, 12 mil exemplares. De quatro livros! Quem tem mais sucesso, não sendo fugaz. Paulo Coelho, por exemplo. Vende milhões de exemplares. Não estou levando em conta os textos dele. Acho importante o que ele faz. Ele não inventa linguagem, é de fácil leitura e isso é bom para iniciar o jovem na leitura. É bom ler esse tipo de coisa, é fácil. Como primeiro degrau para o jovem é bom. Agora, daqui a 200 anos estaremos falando em Drummond ainda. E Paulo Coelho? Será que as pessoas irão ler Brida, por exemplo. Não, pois é fácil demais. Pode ser feito em qualquer época. Qualquer um pode fazer. E Drummond qualquer um não pode ser. Os 12 mil exemplares que Drummond vendeu naqueles anos acabam sendo mais importantes do que os 300 mil que Paulo Coelho vende num mês. Drummond não fez aquilo tudo buscando o sucesso. Ele buscou a essência. Pergunta a um jovem, daqui a um ano a essência de um livro do Paulo Coelho. A verdade de Drummond não é criada, é construída. Existe um processo. E esse processo é, muitas vezes, mais importante do que o resultado. Pois no processo está a essência.
PG – Você acha realmente que os jovens gostam de ler?
ZM – Acho. Tudo é leitura. Por exemplo, eu tô aqui falando com você e já tô lendo o nome escrito na sua camisa, Raul (Seixas) que, lido ao contrário transforma-se na palavra Luar. Minha mente já seleciona, já recebe toda essa informação. Nós lemos o tempo todo. Agora, o que falta é um direcionamento dessa capacidade de leitura. Uma política que incentive o jovem a ler. Não há uma educação para se criar no jovem o hábito de ler, para ele escolher o que ler. O jovem lê o que está exposto. Agora, dizer que o jovem não lê é um pouco demais. Existem iletrados, pessoas alfabetizadas, mas que não tem o hábito da leitura. Adquirir o poder da análise com o que leem. Você tá lendo um monte de besteira que não lhe interessa.
PG – Às vezes os pais não leem. Se fosse ao contrário, o filho iria seguir o exemplo...
ZM – O ser humano vive muito da imitação, é verdade. Se você lembrar da sua mais tenra infância, você vai se lembrar que imitava um primo mais velho. Agora, se o pai lê a cartilha da TFP (Tradição Família e Propriedade) aí é uma grande má influência para o jovem. Tem que se reforçar o poder de análise e o poder criativo.