Bloom – A informação está cada vez mais ao nosso alcance. Mas a sabedoria, que é o tipo mais precioso de conhecimento, essa só pode ser encontrada nos grandes autores da literatura. Esse é o primeiro motivo por que devemos ler. O segundo motivo é que todo bom pensamento, como já diziam os filósofos e os psicólogos, depende da memória. Não é possível pensar sem lembrar – e são os livros que ainda preservam a maior parte de nossa herança cultural. Finalmente, e este motivo está relacionado ao anterior, eu diria que uma democracia depende de pessoas capazes de pensar por si próprias. E ninguém faz isso sem ler.
Como ler?
Bloom – Tente ler sem considerações políticas, compromissos ideológicos ou preconceitos. Para o livro que estou escrevendo agora, por exemplo, estou relendo a Divina Comédia, de Dante Alighieri, em italiano. Há certos moralismos em Dante que me irritam. Além disso, há seu compromisso com a visão de mundo católica, e eu não confio em nenhum tipo de religião institucionalizada. Mas, ao lê-lo, procuro me manter aberto. O frescor da língua e a força das metáforas me obrigam a deixar todas as minhas opiniões de lado e me render à força daquele texto. É assim que se deve ler.
O livro Como e Por que Ler foi muito criticado na época do lançamento. Houve quem dissesse que o senhor simplificou demais a questão, outros o acusaram de posar de guardião da "alta cultura". Como responderia a seus críticos?
Bloom – A maior parte das críticas negativas é proveniente de acadêmicos anglo-americanos. Somos inimigos mortais. Há 25 anos venho denunciando esse pessoal. O ensino de literatura no mundo de língua inglesa foi para o inferno. É dominado por ideólogos, por integrantes daquilo que eu chamo de "escola do ressentimento". É gente comprometida com assuntos extraliterários, com mania de desconstruir e relativizar tudo. Eles não se importam com o valor estético. É o politicamente correto que interessa a eles. Por isso, não estou nem aí, nem leio as críticas. Se você tenta ser independente, se não adere a nenhum tipo de moda, se fala honestamente e emite opiniões próprias, se recusa ideologias, inevitavelmente será atacado. É como diz o escritor americano Ralph Waldo Emerson, um dos meus heróis: "O mundo tenta castigar os que não se conformam". Minha maneira de responder aos críticos é escrevendo outros livros.
Qual o papel da literatura num mundo dominado pelas mídias visuais?
Bloom – Há grandes autores, como William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Jane Austen e Charles Dickens, que conseguem sobreviver nas adaptações para as mídias visuais. Mas há outros, como Dante Alighieri, John Milton, James Joyce, Marcel Proust ou Franz Kafka, cujo futuro é completamente incerto. O grande autor português José Saramago é outro por quem eu temo. Somos amigos, escrevi um ensaio sobre o magnífico O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Ele é dos melhores romancistas que conheço, não deixa nada a dever aos grandes nomes da literatura. Mas, sinceramente, acho que num mundo dominado pela imagem livros difíceis como os dele poderão deixar de ser lidos em vinte ou trinta anos. As crianças estão crescendo cercadas por telas. A longo prazo, não sei qual pode ser o efeito disso sobre a capacidade das pessoas de ler para buscar não apenas informação, mas sabedoria e autoconhecimento.
Livros como os da série Harry Potter não são uma boa porta de entrada, um meio de despertar nas crianças o interesse pela literatura?
Bloom – Você realmente acha que as crianças vão ler coisas melhores depois de ler Harry Potter? Eu acho que não. E um dos piores escritores da América, Stephen King (ele é terrível, não consigo ler nem dois parágrafos do que escreve), confirmou minhas suspeitas numa resenha que escreveu para o jornal The New York Times. Segundo ele, as crianças que aos 12 anos estão lendo Potter aos 16 estarão prontas para ler os seus livros. Preciso dizer mais? Os Estados Unidos são um país em que a televisão, o cinema, os videogames, os computadores e Stephen King destruíram a leitura.
Por que não ler os livros de J.K. Rowling, a autora de Harry Potter?
Bloom – Li apenas uma das obras dessa autora. A linguagem é um horror. Ninguém, por exemplo, "caminha" no livro. Os personagens "vão esticar as pernas", o que é obviamente um clichê. E o livro inteiro é assim, escrito com frases desgastadas, de segunda mão. Escrevi uma resenha para o Wall Street Journal falando mal de Harry Potter. A polêmica foi imediata. Foram enviadas mais de 400 cartas me xingando de todos os nomes. A defesa de livros ruins como esses, que vem de todos os lados – dos pais, das crianças, da mídia –, é muito inquietante e nem um pouco saudável.
Em seu livro anterior, Shakespeare – A Invenção do Humano, o senhor afirma que o dramaturgo William Shakespeare "inventou o humano". Poderia explicar um pouco melhor essa idéia?
Bloom – Grande parte do que hoje consideramos uma personalidade humana foi invenção de Shakespeare. Há hábitos que desenvolvemos, como o de parar de repente e escutar a nós mesmos, que só passaram a existir depois dele. Preste atenção na literatura anterior, em forma de verso, prosa ou teatro. Você simplesmente não encontra monólogos interiores como os que vemos em Shakespeare. Aquilo que gostamos de chamar de nossas "emoções" surgiram pela primeira vez como pensamentos de Shakespeare. Nele, mais do que em qualquer outro escritor, parece que os personagens não foram inventados. É como se eles existissem desde sempre. Assistir a uma peça de Shakespeare na China, em termos de identificação do público com o que se passa no palco, não é muito diferente de assistir em Nova York ou Londres.
No século XX, tornaram-se muito comuns as leituras psicanalíticas de Shakespeare. O próprio Freud escreveu a respeito da peça Hamlet. Mas o senhor costuma fazer pouco dessas interpretações. Por quê?
Bloom – O romântico Percy Shelley costumava dizer que o demônio deve muito ao poeta John Milton, já que este o retratou de maneira magnífica no livro Paraíso Perdido. Pensaríamos no demônio de maneira diferente se não fosse Milton. Acho que o mesmo ocorre com Freud: ele deve tudo a Shakespeare. Freud é essencialmente Shakespeare em forma de prosa. Se você ler atentamente o que ele fala sobre complexo de Édipo, verá que no fundo não está falando de Édipo, mas de Hamlet. Por isso defendo uma leitura shakespeariana de Freud, e não uma leitura freudiana de Shakespeare. Não podemos negar a Freud, contudo, um lugar entre as quatro ou cinco maiores figuras intelectuais do século XX. E também entre os maiores escritores. Ele era um ótimo ensaísta. Foi o Montaigne de nossa era.
Num de seus livros mais famosos, A Angústia da Influência, de 1973, o senhor dizia que, para uma geração de autores se constituir, tinha de "matar" a anterior. Isso ainda vale para os autores contemporâneos?
Bloom – Sim. A menos, é claro, que a literatura passe por uma mudança radical, o que por enquanto acho muito difícil. Essa mania atual de cyberliteratura, cyberpoema, jogos verbais etc., tudo isso são erupções tardias do que os dadaístas e surrealistas fizeram, aliás muito melhor, 100 anos atrás. Saramago, por exemplo, parece estar sempre envolvido numa complexa competição com Eça de Queiroz e com Fernando Pessoa, os dois grandes autores portugueses que o precederam. Ainda acho que a literatura caminha por meio de um confronto direto com a produção da geração anterior. Isso não vai mudar. Arte é competição.
Crítica também?
Bloom – Acho que toda crítica equilibrada, mais do que competitiva, tem de ser pessoal e excêntrica. É o que Oscar Wilde, outro de meus heróis, costumava dizer: a crítica é a única forma civilizada de autobiografia. Não tenho pretensões de fazer crítica científica. Gostaria muito que meus livros, lidos em conjunto, fossem considerados minha autobiografia.
Em 1979, o senhor publicou The Flight to Lucifer – A Gnostic Fantasy (Vôo para Lucífer – Uma Fantasia Gnóstica), sua única tentativa de escrever ficção. Por que não voltou a ela?
Bloom – Foi um erro. Não devia ter publicado esse livro. Você o conhece? É uma ficção científica na qual o protagonista, uma espécie de Prometeu, vai em busca de seu destino num planeta chamado Lúcifer. Reli a obra numa noite dessas e vi que ela era realmente horrível, fria, sem vida. Os personagens eram todos sobrecarregados. Era pesado, não tinha nada da "vida local" que uma narrativa de verdade deve ter. E aí percebi que eu não era um contador de história, que não podia criar bons personagens. Gostaria que esse livro fosse esquecido de vez. Todo mundo tem a chance de errar uma vez. Essa foi a minha.
Temas religiosos, como a cabala e o gnosticismo, aparecem também em seus livros de ensaios. Onde termina o crítico e começa o místico?
Bloom – Cresci como judeu ortodoxo, mas continuo achando, e isso já irritou muita gente, que o judaísmo ortodoxo não é mais do que uma leitura equivocada da Bíblia hebraica, feita há 1.800 anos. Foi uma forma de adequar a religião à realidade dos judeus que viviam sob ocupação romana. Hoje não vejo por que agir da mesma forma que naquele tempo. Considero as tradições religiosas como produto de uma época – e a criação do universo como uma grande separação, o criador distanciando-se irremediavelmente de suas criaturas. Até imagino, para além do sistema solar, algo parecido com um deus de verdade. Mas ele, ou ela, certamente não pode nos ouvir. É como diz a máxima: se as preces do homem são uma doença da vontade, então seus credos são uma doença do intelecto.
O enfoque literário na leitura da Bíblia é mais interessante do que o religioso?
Bloom – Sem dúvida. O texto original do que hoje chamamos de Gênesis, Exodo e Números é trabalho de um narrador magnífico, certamente um dos maiores contadores de história do mundo ocidental. Aliás, em O Livro de J, observo que o autor desses textos foi uma mulher que viveu 3.000 anos atrás, na corte do rei Salomão, um lugar de alta cultura, ceticismo e muita sofisticação psicológica. Pense em figuras como José, Jacó e Jeová. São todos personagens maravilhosos. E os efeitos poéticos do texto são extraordinários, comparáveis a Píndaro. Os profetas Isaías, Jeremias e Ezequiel também eram grandes escritores, assim como os autores do Evangelho de Marcos e do Livro de Jó. A Bíblia é uma vasta antologia da literatura de toda uma cultura.
E hoje, há algo que preste nesse filão crescente de literatura religiosa e new age?
Bloom – Não. Não temos um grande místico. Haveria espaço para um, sem dúvida, e até clamo por isso em meu livro Presságios do Milênio, mas não há quem se salve. Só lixo, em qualquer língua que conheço. É preciso deixar claro que nos últimos trinta ou quarenta anos não surgiu nenhum autor religioso com alguma força ou originalidade.
Como o senhor situaria a literatura brasileira em relação à literatura mundial? Que nomes destacaria?
Bloom – Comecei a estudar português não faz muito tempo, e ainda não consegui me familiarizar direito com a língua. Não posso dizer que conheço a produção literária contemporânea do Brasil. Quanto aos autores mais antigos, como Machado de Assis, só agora começaram a aparecer boas versões de suas obras para o inglês. Foi por isso, também, que não o incluí em O Cânone Ocidental.
No fim desse livro, o senhor faz uma longa enumeração daqueles que seriam os autores mais importantes do Ocidente, em todas as épocas. Qual o sentido desse tipo de lista?
Bloom – Nenhum. Fiquei muito arrependido de incluir essa lista no livro. Ele ficaria melhor sem ela. Fiz sob protesto, por insistência do meu editor e da agente literária, que achavam que assim o livro venderia mais. Acho perniciosas todas as listas de "melhores livros". São baseadas em leituras apressadas, em premissas equivocadas e sempre acabam deixando de lado algo importante. Portanto, sou completamente contra listas. Inclusive a minha.
Revista Veja, 31/01/2001
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