sábado, 25 de setembro de 2010

Folhas soltas do Vivaldo da Costa Lima.



DOS MUITOS LÍDERES religiosos que exerciam, com maior ou menor influência comunitária, papéis importantes nos candomblés da Bahia, nos anos de 1930, dois se destacavam de maneira indiscutível: o babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim e a ialorixá Eugênia Ana dos Santos, Aninha, do Centro Cruz Santa do Axé do Opô Afonjá.

Suas personalidades transcendiam o ambiente dos terreiros e se impunham, igualmente, à sociedade inclusiva. Édison Carneiro, em artigo na edição comemorativa do 4º Centenário da Cidade do Salvador do jornal A Tarde, em 29 de março de 1949 - "Lembrança do negro na Bahia" (republicado, em 1964, no livro Ladinos e crioulos), falando da "extraordinária importância para a nacionalidade da contribuição do negro", diz: "Esta contribuição se estendeu, com intensidade variável, a todos os campos da atividade humana, entre os quais a luta política pela reforma da sociedade, produzindo figuras eminentes, com os pardos da Teodoro Sampaio, Martiniano do Bonfim e Aninha". Carneiro estava certo em incluir esses dois líderes religiosos, por sua intensa atuação na sociedade global, no plano da influência política, no sentido atual e abrangente do conceito de política.
Carneiro foi amigo de ambos, de Martiniano e de Aninha. O babalaô é mencionado muitas vezes nas cartas dessa Correspondência e Aninha, citada, embora, uma vez apenas, o foi de um modo que resume sua personalidade forte e sensível. Na carta de 8 de janeiro de 1938, Nelson Carneiro informa a Artur Ramos: "Morreu há dias, D. Aninha, do Opô Afonjá, braço do Congresso, sua admiradora". Pode-se imaginar quanto terá custado a Édison Carneiro resumir, nesta curta frase, carregada de intenções, todos os sentidos de respeito e gratidão que mantinha pela falecida ialorixá, desde a ajuda que ela lhe prestou na realização do Congresso até o'santuário que lhe concedeu, no seu terreiro de São Gonçalo, no fim do ano de 1937, quando Carneiro ali se refugiou da perseguição da polícia política. Este fato, lembrado por Carneiro a Senhora e seus Obás, muitos anos depois, é também mencionado no livro de Deoscóredes M. Santos, filho de Senhora, Açobá do terreiro, no seu livro Axé Opô Afonjá:
Em fins de 1937, com a proclamação do Estado Novo, o escritor e etnógrafo Édison Carneiro, sendo perseguido, refugiou-se no terreiro, tendo Mãe Aninha encarregou Senhora de velar por ele, lhe prestar assistência. Esse fato por muitos anos foi conhecido apenas de Aninha e Senhora, até que o mesmo Édison Carneiro deu-lhe divulgação pública.

Nas suas cartas a Ramos, Carneiro tinha que ser discreto e não aludir a fatos e situações que pudessem vir a comprometer seus amigos dos candomblés.
"Nessas duas figuras singulares bem se poderiam identificar as clássicas categorias weberianas da legitimação do poder ..."

Martiniano e Aninha são atualmente nomes lembrados na tradição oral de todos os terreiros da Bahia, mitificados já, na lembrança da "gente-de-santo", dos que os conheceram em vida e dos que ouviram contar histórias de seu poder, de seu conhecimento, de seu imenso prestígio. Nessas duas figuras singulares bem se poderiam identificar as clássicas categorias weberianas da legitimação do poder, no caso, do poder teocrático exercido pelos pais e mães dos terreiros da Bahia: eram eles pessoas que conheciam suas origens étnicas e culturais. Dotados de um superior conhecimento das tradições e reconhecidos por toda a gente como detentores legítimos do saber religioso, dos "fundamentos" como se diz na linguagem dos terreiros; formados nos rigorosos cânones do ritual, dos sacrifícios, do questionamento do destino, das cosmogonias, das teogonias e da ação corretora das normas - Martiniano e Aninha eram ainda dotados de uma aura carismática emanada de suas personalidades poderosas, plenas de sabedoria e de mistério. Viveram queridos, respeitados e temidos. E hoje são lembrados e reverenciados na memória dos terreiros como verdadeiros heróis culturais de sua gente.

Martiniano e Aninha foram as figuras mais importantes e prestigiosas do candomblé da Bahia naquela época. Além de Ramos e Carneiro, muitos outros pesquisadores procuravam conhecer e entrevistar o sábio babalaô e a famosa mãe-de-santo. Carneiro serviu de intermediário a vários desses encontros, especialmente com Martiniano. Num artigo introdutório como esse devo, contudo, necessariamente, limitar-me a um levantamento seletivo das muitas fontes escritas que se referem a Martiniano e a Aninha, e a alguns depoimentos pessoais de antigos dignitários dos terreiros - pais e mães-de-santo, ogãs, obas, ebômes - que os conheceram em vida. Destes últimos, no caso de Aninha, três são de filhas-de-santo suas: Maria Bibiana do Espírito Santo, Senhora, Mãe do Axé do Opô Afonjá, que era, ainda, bisneta da própria mãe-de-santo de Aninha - Marcelina da Silva, Obá Tossi; Ondina Valéria Pimentel, filha do Balé Xangô José Teodoro Pimentel, Iáquequerê do Opô Afonjá e, com a morte de Senhora, sua sucessora naquele terreiro; e Isolina Ataíde de Araújo, Zozó, Mãe do Candomblé Ilê Babá Omin. Sobre Aninha, ainda, o do Obá Abiodum, Arquelau Manuel de Abreu, parente de Aninha e o de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Didi, filho da ialorixá Senhora; seu livro, Axé Opô Afonjá é uma indispensável referência para a história daquela casa. Quanto a Martiniano, muito importantes foram os depoimentos do Oba Até de São Gonçalo, Miguel Arcanjo Barradas de Santana e do seu filho, o Obá Cancanfô, Antônio Albérico Santana, dentre outros informantes válidos.

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