O início de uma vida artística é definidor. Por mais que a arte e a vida venham a mudar, e a negar as suas origens, o começo permanece como referência. No caso de João Gilberto, mais de meio século depois, o início de sua obra é um atestado de coerência.
O disco que inicia a bossa nova é um compacto simples que ele gravou em julho de 1958. De um lado, havia Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Do outro, Bim Bom, dele mesmo. Não era nem a primeira gravação de João Gilberto nem o primeiro disco de bossa nova. Ele já havia gravado dois compactos com os Garotos da Lua, em 1951, e outro, solo, no ano seguinte.
A batida da bossa nova, por sua vez, aparecera no LP Canção do Amor Demais, gravado em abril de 1958 por Elizeth Cardoso. Nele, João Gilberto tocava violão em Chega de Saudade e Outra Vez. Apesar das treze faixas serem todas de Jobim e Vinicius, o LP não é de bossa nova. A "Divina" era uma cantora presa ao samba-canção, com suas ênfases óbvias e gastas.
A cápsula da invenção surge mesmo no compacto de 1958. A criação se dá em dois planos. Chega de Saudade havia sido composta por Jobim como um chorinho. Pois João Gilberto o transformou num samba enxuto, no qual o violão deixa de ser um mero acompanhante para dividir o primeiro plano com a voz. A letra é interpretada como quem fala, de modo íntimo. A melodia (de fundamento europeu) se amalgama à harmonia (com inspiração do jazz americano) e ao ritmo (que vem da África e se condensa no samba) para dar origem a outra coisa: um som que é uma arte.
No outro lado do disco está o segundo plano inventivo, o do João Gilberto compositor, autor de Bim Bom, a canção que não tem nada de baião. Alternando os sons "bim" e "bom", a letra diz:
É só isso o meu baião
E não tem mais nada não
O meu coração pediu assim, só.
A letra oscila entre a negativa absoluta e a afirmação de um resíduo solitário: "só isso", "não", nada", "não" de novo, e outra vez "só". O que resta, de concreto, são duas palavras, "baião" e "coração". Mas o que elas significam?
Antes de tentar responder, cabe outra questão: em qual instância o criador se manifesta mais: na interpretação que transforma Chega de Saudade de chorinho em samba, ou na autoria de Bim Bom? Desde 1958, João Gilberto segue as duas estratégias, mas dá preferência à primeira delas. Ele recompõe músicas tradicionais e contemporâneas. Trabalha com tudo, de sambas a boleros. Em português, inglês, italiano ou francês. Subtrai notas, altera o andamento, introduz silêncios, junta versos e muda as letras.
tirando os andaimes
O que resulta é algo bem distante do original. João Gilberto retira os andaimes da música-matriz para torná-la mais direta, objetiva e clara. Em Lígia, podou o próprio nome da moça do título, para evitar o derramamento de chamá-la em altos brados. Em Sampa, repetiu a palavra "alguma" logo no início: "alguma, alguma coisa acontece no meu coração" e mudou "a força da grana que ergue e destrói coisas belas" para "a força da grana que faz e destrói coisas belas".
Quando se pergunta a João Gilberto por que não compõe mais, sua explicação é singela e generosa: "Mas há tanta coisa bonita a ser consertada!". Ele prefere o trabalho modesto de polir a beleza que já existe a satisfazer o seu "eu" autoral. É um trabalho árduo. Em 1971, num show que fez na TV Tupi, ele interpretou Largo da Lapa, de Wilson Batista e Marino Pinto. A interpretação é maravilhosa. Mas ele acha que o encaixe entre a primeira e a segunda estrofes ainda não está bom. Por isso, quase quarenta anos depois, ainda não há registro em disco.
Com isso, o João Gilberto compositor ficou em segundo plano. Mas o panorama está mudando. Agora mesmo, foram lançados três CDs com Bim Bom. Bebel Gilberto, a filha do cantor, gravou-a sem violão em All In One. Adriana Calcanhoto cantou-a, com percussão do Olodum, em Partimpim Dois. E Ithamara Koorax interpretou-a em The Complete João Gilberto Songbook.
Antes delas, a música já fora gravada por Lena Horne, cantora americana de jazz. Ela fez uma temporada, em 1960, no Golden Room do Copacabana Palace. Chegou ao Rio sabendo a música e convidou João Gilberto a visitá-la na sua suite - cobriu-o de elogios e avisou que Bim Bom seria a única canção em português que interpretaria no show. Percebera a sua beleza antes de muitos brasileiros. Caso de Sérgio Porto, que, com o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, era o cronista mais famoso da cidade. Ele publicou uma coluna dizendo que Lena Horne não deveria ter escolhido Bim Bom porque a canção não era em português...
Bim Bom também foi gravada por Charlie Byrd, Sergio Mendes, Ornella Vanoni, Stan Getz e Astrud Gilberto. As interpretações atestam a vitalidade de Bim Bom. Uma vitalidade que foi analisada em profundidade em Bim Bom - A Contradição Sem Conflitos de João Gilberto, o belo livro que Walter Garcia publicou em 1999. João Gilberto compôs Bim Bom em meados dos anos 50. Antes, portanto, de sair do Rio para a peregrinação que o levou a Porto Alegre, a Diamantina, a Juazeiro, a Salvador, e de volta ao Rio. Foi nesse percurso, descrito com brio por Ruy Castro em Chega de Saudade, que ele inventou a sua arte - e burilou Bim Bom.
canção em quatro línguas
Voltando à pergunta: o que significam "baião" e "coração", o que quer dizer "bim bom"? É do compositor Ronaldo Bôscoli a informação de que João Gilberto buscou mimetizar o balanço de lavadeiras, com bacias de roupas na cabeça, a caminho do rio São Francisco. De Bôscoli ao livro de Ruy Castro, e dele ao de Walter Garcia, a informação virou realidade. A mim, no entanto, João Gilberto disse mais de uma vez que essa história é folclore, que não aconteceu. A Edinha Diniz, a autora de Chiquinha Gonzaga: Uma História de Vida, ele contou que usou "baião" como sinônimo de "troço", "treco" ou, como dizem os mineiros, "trem". "Bim bom" seria então o espaço entre a sua "coisa" e o coração, entre a realidade e a afetividade, entre o objetivo e o subjetivo: a canção, o som, a arte.
Em Hô-Ba-Lá-Lá, João Gilberto também segue o caminho que vai e vem do coração à realidade e se materializa na canção:
É amor o hô-bá-lá-lá
Hô-bá-lá-lá uma canção
Quem ouvir o hô-bá-lá-lá
Terá feliz o coração
O amor encontrará
Ouvindo esta canção
Alguém compreenderá
Seu coração
Vem ouvir o hô-bá-lá-lá
Hô-bá-lá-lá
Esta canção
As canções de João Gilberto estão por ser descobertas. The Complete João Gilberto Songbook registra a existência de onze músicas de autoria dele. Mas não dá a letra de Undiú nem informa quem a escreveu. A canção é uma coautoria de João Gilberto com Jorge Amado. O romancista era amigo do compositor. Foi padrinho do casamento dele com Astrud Gilberto. Jorge Amado depois disse a Sergio Buarque de Holanda para receber João Gilberto, que queria pedir a mão da filha do autor de Raízes do Brasil, Miúcha, com quem veio de fato a se casar.
O título original de Undiú é Lamento da Morte de Dalva na Beira do Rio São Francisco, em Juazeiro. Foi composta no final dos anos 50 para integrar a trilha-sonora Seara Vermelha. O filme, baseado no romance de mesmo título de Jorge Amado, foi dirigido por Alberto D'Aversa em 1963. D'Aversa, um italiano que se radicou em São Paulo e trabalhou no Teatro Brasileiro de Comédia, chamou o maestro Moacir Santos para fazer a trilha-sonora. Ele pôs Lamento da Morte de Dalva no filme, mas esqueceu de colocar nos créditos que Jorge Amado fizera a letra. João Gilberto a gravou, com o título de Undiú, no seu álbum de 1973. Dos versos de Jorge Amado, restou uma palavra: "undiú".
The Complete João Gilberto Songbook também não traz a mais recente composição dele, Japão. Ela vem sendo trabalhada por João Gilberto desde 2004, depois de sua primeira turnê no Japão - e foi aplaudido em cena aberta durante 25 minutos, contados no relógio. Na turnê seguinte, uma das salvas de palmas se estendeu por 38 minutos ininterruptos. A canção, quadrilíngue (o verso em japonês quer dizer "Eu te amo Japão") está assim:
Je t´aime beaucoup, Japão
I love you
E te amo por que
O teu coração é cheio de amor
Anata ga suki Nipon
Je t´aime Japão
Te amo
I love you.
É só isso o seu baião.
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