sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Cássia faz falta, por Julinho Bittencourt.

Cássia Eller vivia machucada. Seus joelhos estavam sempre esfolados dos tombos que levava no palco. Jogava-se no chão com força e não estava nem aí. Seu filho Francisco Ribeiro Eller, o Chicão, na época com dois anos, dispara: “mãe, você está machucado”. Ela instantaneamente responde: “já te disse, não é machucado, é machucada. Machucado é homem, machucada é mulher!” E o garoto: “mas mulher não namora mulher”, e ela prontamente: “claro que mulher namora mulher. Eu sou mulher e namoro a Eugênia”. E estava feito, sem nenhum drama, elaboração nem problema. Bastava a verdade. Qualquer coisa que pudesse desconcertar ou constranger a maioria das pessoas para ela era assim. Passava batido. Essa e uma série de outras constatações fazem parte do acervo de lembranças de duas boas amigas dos tempos de Brasília, que formavam uma espécie de ponte afetiva entre o show business e a vida dos normais.

Uma delas, a jornalista Deborah Dornellas, chegou a ser a sua primeira empresária, entre 1988 e 1989. Foi por meio dela que entrou em cena a também jornalista e professora Daniella Goulart, a Dani. As duas falam sobre a cantora em profusão. Uma completa a frase da outra e, como se houvessem combinado, tudo o que dizem está no presente. A Cássia gosta, a Cássia faz, não faz e por aí afora. Enquanto contam, não há julgamento ou melancolia. A única coisa que permeia tudo é uma energia afetiva muito forte, como se um vulcão tivesse se instalado na vida delas, definitivamente. E suas lavas ainda espirram em todos enquanto falam. E começam a contar a história pelo final da década de 80, quando Brasília era a capital do rock nacional. Bandas da cidade como Legião Urbana, Capital Inicial e Paralamas do Sucesso estavam no auge. Cássia ainda era pouco mais do que uma garotinha e se apresentava no bar Bom Demais, na Asa Norte, na quadra 706. O bar lotava sempre.

Segundo Deborah, ela foi para São Paulo só porque precisava fazer algo da vida. “Sempre tinha alguém buzinando no seu ouvido. Tinha um talento extraordinário. A reação das pessoas quando cantava em Brasília era de assombro. ‘Essa mulher é um talento, tem de fazer algo da vida’, diziam.”

Em 1988 gravou uma fita demo com quatro músicas: Ne me quitte pas, de Jaques Brel, Labirinto, do brasiliense Márcio Faraco, Aint got nothing but the blues, de Duke Ellington e Já seu pra saber, de Itamar Assumpção. Deborah foi pra São Paulo, no final daquele ano, com várias cópias da gravação em cassete. Levou ao Aeroanta, o lugar badalado da música underground em São Paulo, mas os promotores do espaço não quiseram, não era o espírito da casa. A peregrinação continuou no Crown Plaza e finalmente no Espaço Off, o único que topou. Tudo acertado. Mas dez dias antes do show, Cássia resolveu que não ia mais fazer. Não estava se sentindo segura e resolveu não cantar. Todos insistiram, inclusive Eugênia, mas não adiantou. Ela não cantou e não há ninguém que hoje tenha uma cópia dessa fita demo. “Cássia era obra do acaso. Ela não corria atrás da fama, não queria ser reconhecida nem como homossexual nem como nada. Só queria cantar. Amava a música e os amigos e o resto que se danasse”, dispara Deborah. E acrescenta: “no dia em que morreu, a Eugênia me falou que ela estava cansada, farta de tanta responsabilidade, deprimida. Não estava suportando o peso da fama, da grana, de nada.
Não agüentava o bando de gente atrás dela e ao mesmo tempo não tinha jeito de falar que não gostava. Ela fazia música com muita paixão, muita vontade, porque era a única coisa que sabia fazer na vida.” Nesse ponto Dani interrompe: “nada mesmo. Ela não guiava, não sabia comprar um presente. Uma vez eu fui com ela comprar algo pra Eugênia e ela pediu pra eu assinar o cartão e eu dizia que não podia, ela ficava impaciente. Era muito tímida, detestava quando aparecia gente que ela não conhecia, não sabia onde enfiava as mãos, ficava sem jeito”. Eugênia é quem fazia a parte chata: participava das reuniões de pais na escola, levava o Chicão no pediatra, pagava as contas, administrava a casa. As duas estavam juntas desde 1987. Era o pilar, se não fosse por ela a casa desmoronava. Lidava com a Cássia como uma criança, aceitava as coisas. A Cássia não tinha regras. O único cara que a conseguiu dirigir foi o Wally Salomão, que também era doido. O encontro ocorreu na turnê de Veneno Antimonotonia, de 1997. Com as pessoas mais sérias ela só falava o essencial e necessário e despachava logo. “A Cássia é uma das pessoas mais espontâneas que eu já vi”, conta Dani, “não tinha cinismo, nem disfarce, era aquilo mesmo.
Convivendo com ela e a Eugênia, me tornei uma pessoa muito mais tolerante. Era uma relação que fluía tão normalmente, tinha um clima muito legal que não era afetado por nada”. Deborah reitera: “elas moraram na minha casa. Foi a primeira vez que eu vi duas mulheres se beijando e aquilo não incomodava de forma alguma. Para mim foi uma entrada em outro mundo de uma forma muito especial, delicada”.

O baixista Otávio Fialho, pai do Chicão, foi o último homem com quem ela teve relações sexuais. Confidenciou isso a Deborah pouco antes de morrer: “houve outros. Certa vez se apaixonou perdidamente por um músico. O cara foi buscar a Cássia em casa pra ver um show. A Eugênia a arrumou e maquiou pra ela sair. Ela sempre soube de tudo e sempre soube também que nunca iria perder a Cássia, como não perdeu. Dani diz que “antigamente, pra escolher roupa, era um inferno. Ela trocava várias vezes e dizia, ‘ai, Eugênia, tá escrito “sapatão” na minha testa, eu não vou sair assim’. Não gostava que olhassem muito pra ela nas ruas, não queria carregar bandeira nenhuma. No fim acabou carregando sem querer. Sempre foi muito assumida, mas aquilo era natural dela. Era assim, e não havia nada que ela escondesse ou disfarçasse”, explica. Uma vez uma moça, saída do interior do Piauí, foi trabalhar na casa da Cássia como faxineira. A moça não tinha a menor idéia de quem era a cantora que, entre várias peculiaridades, gostava de andar nua pela casa. Então, quando percebeu que a moça ficava constrangida ela saia do banheiro e, propositalmente, levantava a toalha. A moça enrubescia e a Cássia morria de rir. Era uma criança. No palco, fazia coisas parecidas. Em alguns shows mostrava os seios, noutros não mostrava nada. Era tudo de improviso. Nem da voz ela cuidava. Bebia, fumava, cheirava e se comportava como adolescente. Mas tinha seus limites bem claros. Quando engravidou parou completamente de usar cocaína, de beber e de fumar. Ela amamentou Chicão durante três anos e, nesse período, parou completamente com tudo.
Grana
Todas as cantoras têm a carreira na mão. E ela em momento algum pensou nisso. Apaixonava- se por uma obra, gravava e acabou. Foi assim com o Cazuza, com Nando Reis e muitos outros. Ela ia tocar em Montreux no começo de 2002 e estava contente com a idéia de ir pra lá. Ao mesmo tempo sempre teve problemas com produtores. Eles a encastelavam, atendiam telefonemas que eram pra ela, a levavam pra comer separadamente e ela queria era ficar com a banda numa situação mais íntima e simples. Nunca gostou de escuro e nem de ficar sozinha. Adorava sua banda. Eram um bando de crianças querendo uma carreira internacional. Mas Cássia não queria saber de nada disso.

Dinheiro ela só ganhou com o Acústico MTV. Até então era tudo incerto. Em 1993, já com dois discos, foi morar no apartamento de Deborah e do casal Dani e Fábio, seu ex-marido, no Rio de Janeiro. Levou junto Eugênia e Alex, o roadie da banda. Ninguém tinha grana e todos comiam arroz, feijão, hambúrguer e, muitas vezes, mingau pra encher a barriga. Foi com o disco Cássia Eller, de 1994, que tem a música Malandragem, que as coisas começaram a andar financeiramente até se acertarem, em 2001, com a história da MTV. O Natal em Brasília No dia 22 de dezembro de 2001, ela desembarcou junto com Eugênia e Chicão, em Brasília. Ia passar uns dias na cidade, com a família. Havia combinado com todos para depois, por sua conta, irem para sua casa no Rio. Ela faria o show de réveillon na Barra da Tijuca. A companheira e o filho ficariam na capital federal.

Sua carreira finalmente decolava. Mas, segundo os depoimentos, naquele dia parecia muito séria. Quis saber da vida das amigas. Como andava o casamento, o namorado, o emprego e uma infinidade de coisas que não faziam parte das suas conversas. Ela gostava mesmo era do escracho. O seu disco acústico vendia aos cântaros e, para qualquer artista do mundo, isso seria motivo de sobra para comemorações. No entanto, ela dava sinais claros de chateação. Definitivamente não sabia lidar com aquilo. Era um bando de gente, amigos de última hora, jornalistas e toda a sorte de chatos na cola.

Sempre que estava em Brasília ficava na casa da Ana Florência, a Fofó, irmã de Eugênia. Para lá iam seus irmãos e amigos. E assim foi no dia 25, durante o almoço de Natal, quando jogou sinuca e futebol com o filho, conversou e pareceu, aos olhos das amigas, bem tranqüila. Foi a última vez que se viram.

No dia 28, de volta ao Rio de Janeiro, houve um ensaio para o show da Barra da Tijuca. Cássia estava calada, um dos músicos chamou sua atenção porque bebia cerveja e ela reagiu mal. O trabalho da tarde não rendeu e logo em seguida ela foi, sozinha, para casa. No começo da madrugada conversou, por telefone, com Eugênia. Estava se sentindo melhor e foi dormir. Tinha bebido um pouco. Acordou cedo, ligou pra Lan Lan, percussionista da sua banda que também morava em Laranjeiras, e disse não estar bem. As duas, junto com a Thamyma, outra percussionista do grupo, foram passear de carro e tomar água de coco na praia. Ela continuou mal e acabaram numa clínica. Entrou e em seguida saiu correndo.

A imprensa disse que estava desorientada. Segundo as amigas estava envergonhada, nervosa, com medo de chamar atenção e fugiu, da mesma forma como fugiu daquele show no Espaço Off, no final da década de 80. Foi hospitalizada por volta do meio-dia. Naquele mesmo dia sua mãe, Nancy Ribeiro, e irmãos desembarcavam no Rio para o réveillon. Era o aniversário da sua mãe. No final da tarde Cássia morreu.

Chicão é hoje filho de Eugênia

Cássia Eller se foi, mas não parou de fazer barulho. O processo que envolveu a guarda do filho Chicão mobilizou os pais. O avô pediu na justiça a guarda do menino. “Ele tem 16 filhos extraconjugais. Por que não pega um desses para criar?”, declarou Nancy Ribeiro, mãe de Cássia, que já estava separada há 17 anos, em entrevista para a revista Isto É Gente, na época do processo. Vários artistas assinaram manifestos a favor de Eugênia. Ela venceu a ação e criou jurisprudência no país. Com isso, Cássia, Eugênia e Chicão abriram uma pequena janela para que várias outras pessoas no Brasil possam enxergar a própria felicidade. Mas é preciso registrar, em todas as suas entrevistas, que Cássia não deixou uma linha com relação ao pai que não seja de carinho, afeto e gratidão.

Um comentário:

BethAmy disse...

Maravilhoso o relato sobre a Cássia Eller... se as pessoas talentosas que conseguem ser famosas fossem como ela, tudo seia diferente no mundo... mas sempre existem aqueles que bajulam... nada disso deve ter sido fácil prá ela... essa fama toda e virou um mito mesmo... uma pessoa maravilhosa mesmo!!

Powered By Blogger