Até hoje, ela era a maior voz feminina viva do Brasil. Desde o finalzinho de hoje _que ano é este de 2001, que não acaba nunca?, entrou para a galeria notável de vanguardistas que abandonam a luta cedo demais, por razões provavelmente imbecis.
O papo de "maior voz feminina" parece balela para homenagear, sob alto impacto, quem acabou de morrer.
Não é o caso, desta vez. Quem está ligado na cena sabe muito bem que não havia páreo para Cássia Eller.
Marisa Monte, a mais equipada para lhe fazer sombra (e que de fato fazia, se pensarmos em termos comerciais), no conjunto ficava léguas atrás de Cássia, por ser mais calculista, menos confessional, mais matemática, menos artista.
Bethânia, Gal, Elza e divas antigas assim não teriam como ter, para a longa década de 2000, um centésimo da importância que Cássia nem começara a ter.
Porque ela foi, no curto tempo que aqui passou, conjugação explosiva de uma voz trovejante; de um senso raro de interpretação; de um conhecimento musical tão gigante quanto intuitivo; de uma personalidade aparentemente tímida e retraída, mas eloquente demais no palco.
Mesmo só gozando de pleno reconhecimento comercial há pouco _por causa do "Acústico MTV", Cássia foi a dona dos rápidos anos 90, essa década tão desgraçada pelo achatamento que a grana e o imediatismo impuseram ao talento, à arte.
Não é por falta de simbolismo que Chico Science, outra das jovens esperanças musicais brasileiras, morreu nos hoje dolorosamente asquerosos anos 90.
Não há que questionar a trajetória de Cássia. Ela passou boa parte de sua história pública _iniciada em disco em 1990, após muita labuta por baixo dos panos da nossa indústria do disco_ se enclausurando nas canções de dois de seus ídolos, Renato Russo e Cazuza.
Se havia algo em Cássia que os procurava, mesmo morbidamente, não nos compete julgar.
A dor é porque ela era a ilusão de ser uma tábua de salvação, num país apodrecido por nomes que seria desrespeitoso citar aqui.
Se ela fechará um triângulo de dor com dois de seus ídolos mortos precocemente, já nem é mais de nossa conta. O fato é que Cássia teve muitos outros ídolos.
Desde 90, ela abrilhantou, mesmo quando se equivocava, canções velhas ou inéditas de Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Luiz Melodia, João do Vale, Ataulfo Alves, Luis Capucho, Raul Seixas, Rita Lee & Mutantes, Lennon & McCartney, Jimi Hendrix, Nação Zumbi, Lobão, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Tião Carvalho, Riachão, Nando Reis (nos últimos anos seu principal compositor, autor por exemplo das lindas "O Segundo Sol" e "Relicário"), Djavan (que há pouco gravou com ela a pungente "Milagreiro"), Bocato, Mário Manga, Alice Ruiz, Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Carlinhos Brown, RPM etc.
Sempre lhes acrescentava uma nova miragem, algum novo preceito, qualquer nova cor.
Não contente, ainda emulou e transbordou intérpretes como Otis Redding, Edith Piaf, Erasmo Carlos e Camarón de la Isla. Pelas listas acima, afora exceções, é nítido que gostava dos faiscantes, dos malditos, dos rebeldes, dos transgressores, dos inventores.
É que se identificava com eles, era um deles _é o que explica, entre tantas coisas, sua importância fundamental (e muitas vezes zombeteada) para a causa gay dos 90.
Sua jovem carreira de estrela já pendurava problemas, é verdade. Notada (com total justiça) como animal fogoso de palco, passou a ser instada a gravar cada vez mais discos ao vivo.
À revelia ou não, entrou no círculo vicioso da rentabilidade com sua gravadora, a voraz Universal, que vê aqui mais uma de suas apostas se desfazendo em tristes cinzas.
O investimento parece perdido também porque Cássia, no apetite de sua gravadora pela redundância, deixou menos variedade do que o troncudo potencial faria supor.
Só a mais famosa canção de seu repertório, "Malandragem" (de Cazuza e Frejat), ela gravou três vezes em seis anos. Era jovem demais para tamanha redundância, e essas coisas afinal também podem fazer mal à saúde.
"Malandragem" ficou massificada demais, mas há de ser por seus versos cândidos que Cássia Eller será para sempre lembrada. Talvez com esse mesmo hino ela dance no éter, com Dolores Duran, Elis Regina e Clara Nunes, a ciranda da juventude perdida. Não, Deus não é brasileiro.
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