Em uma produção completa de vanguarda, o pintor espanhol Joan Miró conseguiu unir o sofisticado e o primitivo, a complexidade das formas e a simplicidade da natureza representada, em um conjunto artístico que teve sempre constante o contraste das cores, dos signos e das sensações. Mesmo que sua obra tenha passado por momentos e gêneros distintos, há nela uma conjunção orbital harmônica, uma sintonia de tonalidades, formas e temas circulares, que giram ad infinitum em torno da mesma problemática: a interação do ser com o cosmos, do homem com o mundo, através da expressão universal do pensamento e da criatividade: a arte.
Nascido em 1893, em Barcelona, seus primeiros desenhos guardados datam da primeira década do século XX, época em que ingressou na Escola Superior de Artes Industriais e Belas Artes de Barcelona, onde trilhou os primeiros passos de uma jornada de aproximadamente oitenta anos de dedicação à arte. Na década seguinte, estudou na Escola de Arte de Francesc Galí, através da qual interagiu de forma estreita com a arte de vanguarda produzida na época e, a partir desse contato, organizou as primeiras exposições com obras já marcadas pela inovação. Em 1920, esteve, pela primeira vez, em Paris, onde conheceu Pablo Picasso, André Masson, Pierre Matisse, André Breton, Tristan Tzara, entre tantos outros nomes da arte moderna, época em que pintou o célebre "Carnaval de Arlequim" (1924-1925).
O amadurecimento do artista, contudo, não se deu apenas com seu contato com artistas e novas técnicas, mas com as conseqüências da Guerra Civil Espanhola e, principalmente, da II Guerra Mundial. Assim, nas décadas de 1930 e 1940, intensificaram-se os traços e surgiram obras-primas como a série "Constelações". Prêmios acumularam-se na segunda metade do século XX e, em 1963, houve a exposição de sua obra completa no Museu Nacional de Arte Moderna de Paris, por ocasião de seus setenta anos. Entre as obras desse momento que se destacam estão "Azul II" (1961), "A lição de esqui" (1966) e "O ouro do azul" (1967), seguidas por "Maio de 1968" (1973) e "O jardim" (1977), entre inúmeras outras. Em 1975, foi fundada em Barcelona a Fundação Joan Miró, com a intenção de oportunizar ao público um espaço de referência à arte moderna e preservar a coleção do pintor catalão. Nela estão conservadas mais de 14.000 peças – uma verdadeira constelação de relíquias da modernidade. Em 1983, aos noventa anos, Miró faleceu na cidade natal, deixando o legado de uma paixão que o acompanhou por toda a vida.
Dentre as principais características de sua obra, estão o despojamento da linguagem pictórica, a ruptura completa com os valores da arte tradicional e a liberdade suprema de criação, elementos que bem explicam o rótulo a ele dado de gênio solitário da arte – Miró não pertenceu a movimentos, nutriu-se deles para produzir algo único, singular. Inicialmente, aproximou-se das técnicas fauvistas, passando, após chegar a Paris, a uma significativa influência de tendências dadaístas e surrealistas, momento em que começou a utilizar grafismos e valorizou ainda mais as cores primárias, pintando grandes universos em meio ao vazio, elementos que o acompanharam nas décadas posteriores. Do Dadaísmo, colheu a destruição das formas e a colagem; já do Surrealismo, buscou a incongruência dos traços e a mistura entre o real e o irreal, produzindo obras que causaram, ao mesmo tempo, espanto e surpresa. Mas Miró, ao nutrir-se das vanguardas européias, na primeira metade do século XX, foi além desses movimentos, criando técnicas próprias, que podem ser visualizadas como uma síntese entre a complexidade do mundo moderno e a candura da natureza. Ao final dos anos de 1950, começou a ser freqüente o extravasamento de cores nas telas, ora manchadas, escorridas, ora salpicadas, contrastando com o vazio. E, apesar da importância vital do preto, usado com abundância em seus trabalhos, a força suprema de toda a sua produção é a luz, em volta da qual sua arte gira astronomicamente.
Em 2005, Porto Alegre foi palco de uma exposição única: a abertura da temporada de Artes Visuais do Santander Cultural realizada com a Mostra Internacional Mirabolante Miró, pela qual o público pode confrontar-se com originais do artista espanhol que bem representaram seus signos, suas técnicas, suas cores preferidas, emanando força e simplicidade em combinações brilhantes. De acordo com um dos curadores dessa exposição, Fábio Magalhães, a força da poesia, que sempre o fascinou, adentra em sua plástica, e sua pintura é essencialmente lírica. (2005, p.27)
Como pesquisador da arte, Joan foi além da pintura, perpassando a gravura, o desenho, a escultura e a cerâmica e, em todos os percursos, agiu como poeta-artesão, experimentando minuciosamente o novo. Também produziu diversos livros ilustrados, a partir de textos de escritores como Jacques Prévert, Tristan Tzara, Jacques Dupin, René Char e, até mesmo, João Cabral de Melo Neto, para quem ilustrou a monografia sobre sua obra, publicada em Barcelona, em 1950. O preto e o branco, bases da sua produção, auxiliam na interpretação da dinâmica da natureza, contornando ou servindo de fundo a cores mais vivas, como o azul, o amarelo, o verde e o vermelho – as quais têm participação constante na arte de Miró. Cores que se aproximam da natureza primitiva, vinculada diretamente à vida camponesa, artesanal do interior da Catalunha, onde – mais especificamente em Mont-roig – a família tinha uma propriedade rural e Joan construiu seu principal ateliê. Ali o artista foi um verdadeiro jardineiro das cores, como ele mesmo definiu, buscando cultivar a liberdade de pensamento e de expressão: Trabalho como um jardineiro. [...] Mal começo a pintar uma paisagem, começo a amá-la com um amor que nasce de uma compreensão gradual. Lentamente, vou entendendo a imensa riqueza de nuances – uma oferenda concentrada, que é uma oferenda do Sol. (2005, p.26)
Miró criou um universo de símbolos que representaram não só uma época, mas o ser e o mundo em sua magnitude. Os ângulos pelos quais lançou seu olhar sobre a realidade provocam reflexões que ultrapassam o tempo histórico, perpetuando-se eternamente - característica que somente a grande arte possui: a de partir da experiência individual para projetar-se em dimensões planetárias, unindo assim tempos e espaços disformes. Através da descoberta, da criatividade e da ousadia, a técnica de Joan Miró pode ser percebida com um universo mágico, dotado dos mais variados elementos da natureza, construído pelas mãos e pela alma do criador.
por Cimara Valim de Melo
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