Zizi tinha 7 anos quando se apresentou em público pela primeira vez. Era a festa de fim de ano da escola no Teatro Arthur Azevedo, em São Paulo, e todos os pais estavam sentados na plateia, a fim de ver o que seus pequenos haviam aprendido nas aulas de educação artística. Ao piano, tocou Beethoven: “Pour Elise”. “As meninas todas ficavam nervosas, choravam, tinham piriri”, lembra. “Eu não tive problema nenhum. Me senti tão à vontade…”
No ano seguinte, lá estava Zizi de volta àquele palco, sentada ao mesmo piano. Desta vez, escolheu uma partitura mais complicada: “Galope do Diabo”, de G. Ludovic. Foi muito bem até mais da metade da execução, mas, lá pelo meio da segunda parte, errou uma nota. E seu mundo desabou em choro. Continuou tocando, mas não conseguia segurar as lágrimas que explodiam sobre o teclado. Quando terminou, foi aplaudida pelos pais dos colegas, que nem sequer tinham notado o erro. Saiu emburradíssima para a coxia e a primeira coisa que fez foi pedir para a professora, dona Gracinha, deixá-la voltar ao palco e tocar novamente o número. Ela tinha errado e nada lhe doía mais do que aquilo.
“Hoje em dia, se eu estiver insegura em relação a um arranjo, fico tensa. Mas, quando entro em cena, rezo para Deus me proteger de mim mesma, da minha vaidade. Tenho de esquecer de mim mesma, parar de pensar se minha roupa está boa ou ruim. Quando fico nervosa é porque estou presa a alguma coisa do ego. Peço sempre para Deus me ajudar a não ficar nesse lugar, porque é um lugar muito desconfortável, onde todas as paranoias passam pela cabeça; a voz não sai direito, tudo trava”.
Capítulo 2
Em meados dos anos 1970, José Possi Neto, irmão mais velho de Zizi e hoje consagrado diretor teatral, foi convidado a dar aula na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Aceitou e mudou-se imediatamente para Salvador. Como a relação dos dois sempre foi muito estreita, Zizi sentiu-se “meio manca” sem a presença constante dele. “Zé sempre foi pai, irmão mais velho, às vezes namorado’ não por nada sexual, mas pelo cuidado, carinho, atenção”, ela diz. Mas a separação dos dois não durou muito tempo. Zizi descobriu logo que a mesma universidade em que Zé Possi ensinava teatro tinha também uma das melhores escolas de música da América Latina. Nada mais conveniente. Prestou vestibular, passou e mudou-se de São Paulo, cidade natal, para a Bahia.
Nesse período, ela ainda acreditava que sua relação com a música se daria exclusivamente pelo piano. E talvez tivesse mesmo se tornado apenas uma instrumentista, não fosse o acaso. Como suas aulas terminavam cedo, Zizi ia para a escola de teatro esperar o irmão. Ficava lá com os atores, ensinando técnica de aquecimento vocal em um velho piano que havia no teatro. Foi se aproximando da turma e, quando se deu conta, já fazia parte do elenco. “Foi ali que minha voz começou a chamar a atenção das pessoas”, recorda. “A partir dos comentários dessas pessoas, minha afinidade com a música foi sendo levada para um lado que até então eu desconhecia: o do canto.”
Zizi costuma dizer que o piano foi seu maior professor de canto. Ela transferiu para seu aparelho vocal todas as noções de dinâmica e nuances de interpretação que usava no instrumento. Era, enfim, uma cantora. Ainda na Bahia, estreou seu primeiro show-solo, Taí. A boa repercussão rendeu um convite para gravar um programa inteiro na TV Aratu, uma emissora local. E a coisa ia bem quando, em 1977, José Possi ganhou uma bolsa de trabalho e se mudou para Nova York. Zizi lembra-se do dia em que foi levá-lo ao aeroporto: “Quando vi o avião sumindo no ar, entendi que minha vida estava por minha conta. Me deu uma solidão… E percebi que a Bahia já não fazia mais esse sentido todo para mim. Meu irmão já não estava mais lá e, profissionalmente, eu já tinha feito tudo que podia”. Vendo que não tinha mais para onde crescer, decidiu mudar de cidade. Próxima parada: Rio de Janeiro.
Capítulo 3
Mas por que o Rio de Janeiro? Zizi sabia que, se voltasse para São Paulo, teria, de novo, de morar com os pais. E, depois da vida livre que levara na Bahia, repressão era tudo que ela não queria naquele momento. Não conhecia nada do Rio de Janeiro. Chegando lá, foi morar em um apartamento com outras sete meninas, em esquema de vaga. Alugou lá seu colchão e ficou por cerca de seis meses. “Era interessantíssimo porque eu não tinha nada a perder; então era uma liberdade impressionante”, lembra. “Tinha de escolher se ia comer ou andar de ônibus. Então, comprava uma maçã e andava a pé.”
Sobrevivia, no começo, fazendo traduções do italiano para o português. Como ganhava por lauda traduzida, aumentava o número de palavras na versão em português para o cachê aumentar. Também fez backing vocal em shows do cantor Walter Queiroz – autor de “Filho da Bahia”, grande sucesso de Fafá de Belém dois anos antes.
Até o dia em que apareceu, debaixo da porta, um bilhete de Roberto Menescal, então produtor da gravadora Philips. “Olhei o bilhete e pensei: ‘Esse cara não é da bossa nova? Será que ele quer que eu também faça backing vocal para ele?”, conta. Como não tinha telefone em casa, foi ao orelhão da esquina. “Quando atenderam e a secretária disse ‘Philips, bom dia’, eu pensei: ‘Ué, o autor de ‘O Barquinho’ trabalha em uma loja de departamento?” Mas Menescal não estava precisando de uma backing vocal. Tinha visto o programa de Zizi na TV Aratu e queria contratá-la para gravar um disco. Ela só precisava ir à Barra da Tijuca, onde ficava a gravadora, para assinar o contrato. Um amigo emprestou o dinheiro do táxi.
Capítulo 4
Flor do Mal foi gravado em 1977 e lançado no comecinho do ano seguinte. “Cinco pessoas me disseram o que eu teria de gravar e eu só obedeci. Pediram um tango, eu cantei. Um rock, eu cantei. Mas, na real, o que tinha da Zizi ali? Apenas a função”, ela diz. “O disco não pintava o retrato da minha personalidade ‘até porque, àquela altura, nem eu mesma sabia o que era. Estava lá a serviço de cantar”.
Nenhuma das canções de Flor do Mal chegou a fazer grande sucesso. Ele só veio depois, e bem devagar. De Pedaço de Mim (1979), chamou atenção, além da faixa-título de Chico Buarque, a belíssima “Luz e Mistério”. Zizi Possi (1980) trazia “Meu Amigo, Meu Herói”, de Gilberto Gil, e versões em português para “Home Again”, de Carol King, e para “God Bless the Child”, de Billie Holiday e Arthur Herzog Jr. Um Minuto Além (1981) emplacou “Caminhos de Sol”, de Herman Torres e Salgado Maranhão, uma releitura menos roqueira de “Agora Só Falta Você”, de Rita Lee e Luiz Sergio Carlini, e “Engraçadinha”, de Tite Lemos e Sergio Saraceni.
O salto quantitativo começou em 1982, quando chegou às lojas o LP Asa Morena. Ali, Zizi começava a valer a pena ao bolso da gravadora. O trabalho seguinte, Pra Sempre e Mais um Dia (1983), deu prosseguimento à boa fase comercial da cantora. “Eu quis ser pop – muito”, assume. “Enquanto o mercado estava sendo abduzido por leis quantitativas, nós artistas estávamos respondendo a essas demandas acreditando que nosso valor artístico era numérico. Eu sabia que tinha uma direção: ou me tornava uma vendedora ou seria descartada pelo mercado. Então, quis sim ser uma grande vendedora. Quis sim ser popular. E fui. Até que, no final dos anos 1980, não aguentei mais esse pique. Nem era final de contrato, mas pedi pelo amor de Deus para sair.”
Capítulo 5
Ao mesmo tempo em que rompia com a gravadora, Zizi terminava também um casamento, inclusive profissional, com o compositor, produtor e guitarrista carioca Líber Gadelha – que rendera aos dois uma filha, Luiza. Não que a relação dos dois estivesse completamente deteriorada. “Eu sabia que estava me separando não por falta de amor, mas porque precisava de um espaço para mim, precisava de um par de ouvidos que me ouvissem com outra profundidade”, rememora. “Por um lado, tinha de sair daquele lugar. Por outro, estava deixando a pessoa que mais amava. Tinha me apaixonado por outro cara, mas sem a menor ilusão de me casar com ele. Sabia que isso era simplesmente uma carona pra sair da relação com Líber. E, no meio disso tudo, tinha uma filha pra criar. Achei que estava enlouquecendo. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida.”
Zizi estava vivendo uma crise existencial profunda. Para piorar a situação, Líber descobriu, poucos meses depois, que estava com câncer. “Tem aquela história de que nada é tão poderoso a ponto de despertar o câncer numa pessoa. Mas dá uma culpa horrorosa. Entrei em parafuso”, conta.
A crise a levava a ficar acordada madrugadas adentro, fazendo passeios periódicos à geladeira. Abria latas de leite condensado, que tomava como se fosse Coca-cola, às vezes misturado com Ovomaltine. Engordou 17 quilos. Foi esse o passaporte, ela diz, para entender profundamente o que diz a música de Gonzaguinha “O que É, o que É”, e cantá-la da forma como canta. “O que é viver? A gente estava vivendo? Um diz uma coisa, outro diz outra. Mas como é isso? Fui fundo para entender que, seja lá o que signifique viver, os argumentos não interessam”, diz.
Foi quando decidiu voltar a São Paulo. Chegou à cidade com uma mão na frente e outra atrás, e a filha no colo. Foi quando surgiram três apresentações no Teatro Paiol, em Curitiba. “Eu chorava e ria, porque não tinha dinheiro pra pagar músico, mas tinha um novo começo”, diz. “Tinha uma Zizi se dando conta das perdas e do buraco, e outra entendendo que esse buraco era a subida pruma outra história”. Ali, foi reconstruindo a vida. Mesmo sem dinheiro para pagar os músicos antecipadamente, montou o show, que rendeu outros e outros. E um álbum – “talvez o mais importante de sua história: Sobre Todas as Coisas”.
Capítulo 6
A estética camerística de Sobre Todas as Coisas (1991), calcada em piano, violoncelo e percussão, regeu quase tudo que Zizi faria dali para a frente e vale até hoje. Ela não tinha mais o sucesso dos tempos de “Perigo”, mas ganhou prestígio. Gravou, na sequência, Valsa Brasileira (1993) e Mais Simples (1996), outros dois álbuns que davam prosseguimento ao conceito musicalmente sofisticado da nova Zizi.
Recontratada pela Philips (então rebatizada de Polygram), teve uma ideia um tanto ousada para o trabalho seguinte: produzir, acompanhada por uma grande orquestra, um disco de músicas italianas. O conceito seria o mesmo de uma ópera: uma história com começo, meio e fim, contada por meio das canções. “No meio da pesquisa do disco, pensei: “Estou louca! Isso não vai vender nada! São Paulo e Rio, até pode ser. Mas o que vão achar disso em Goiás? O que estou fazendo aqui? Tenho uma filha tem 12 anos que preciso terminar de criar!”.
Per Amore saiu no finalzinho de 1997, com direito a música na novela Por Amor, que Manoel Carlos escrevia para o horário nobre da Globo. Ninguém apostava muito no sucesso comercial do disco. Em crítica para a Folha de S.Paulo, Paulo Vieira terminou assim seu texto: “Na estapafúrdia hipótese de uma boa acolhida do disco pelas rádios, Zizi seria responsável pelo primeiro verão brasileiro em andamento de adágio”. A hipótese não era tão estapafúrdia assim. Zizi nunca vendeu tanto disco em toda sua vida.
Capítulo 7
Financeiramente, Zizi estava estabilizada. O sucesso comercial de Per Amore gerou outro álbum em italiano, Passione, logo no ano seguinte. E mais sucesso. Para não se aprisionar na personagem da cantora italiana, lançou na sequência Puro Prazer, em 1999, regravando, sobretudo, clássicos da música brasileira, acompanhada apenas de piano acústico.
Outra depressão invadiu sua vida depois do disco posterior, Bossa (2001). “Um dos meus irmãos estava quase morrendo. Quando ele finalmente saiu do coma e do risco de morte, eu relaxei e deprimi”, lembra a caçula de três irmãos. “Fiquei um tempão muito mal”. Para voltar à vida, precisou fazer um grande esforço. Foi ajudada pela música. Ela costuma dizer que o álbum Pra Inglês Ver… e Ouvir (2005) a curou. Trazia apenas canções em língua inglesa, como “Fly Me to the Moon”, “Moon River” e “Love for Sale”. “São músicas gostosas e aconchegantes. Eu não tinha muita energia em mim. Cantar músicas em português ou coisas intensas como ‘O que É, o que É’ estava fora de questão”, diz. “Os standards norte-americanos eram uma zona de conforto e de beleza. Fui melhorando, me relacionando melhor com os remédios, fui saindo dessa dependência química que é barra-pesada.”
Quase caiu de cama novamente quando Luiza, que já era uma mulher e construía sua própria história na música, resolveu sair de casa. “A síndrome do ninho vazio existe mesmo e é muito doido”, afirma. “É uma experiência de morte. E, recém-saída de uma depressão, vou te dizer que isso não foi muito confortável”. Ao mesmo tempo, Zizi viu na filha repetições de sua própria vida, relembrou a menina que se descobriu cantora na Bahia, a mulher que estourou nas rádios e viveu intensamente a vida no Rio de Janeiro, a cantora que passou por renascimentos inacreditáveis em São Paulo. E agora, finalmente, pode dizer, sem a doce ingenuidade que é concedida como um presente apenas aos jovens: “Eis aqui, eu toda!”.
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