quarta-feira, 25 de novembro de 2009

RAP - NAS QUEBRADAS DAS TRADIÇÕES, Célia Maria Antonacci Ramos

Hip hop é um meio alternativo de produção e comunicação cultural contemporâneo surgido no Bronx, New York, nos anos 70, especialmente entre os afro-descendentes, que e rapidamente se espalhou pelas Américas e Europa. Esse meio popular de comunicação é o resultado da agregação estética de outras expressões comunicativas. Teatro de corpo, de som, de palavra e, ainda, de tecnologia, o hip hop expressa tradições africanas com imagens-mitos e técnicas do aqui e agora.
O rap é a sua expressão musical e combina sofisticadas técnicas de reprodução sonora da era tecnológica com manifestações vocais urbanas. É uma simbiose das culturas ancestrais de comunicação oral, muito presente ainda nos países da África negra e em periferias das grandes cidades com o Hight tech contemporâneo da sociedade informatizada.

Hoje, não só o rap é o ritmo do hip hop, mas também o jazz, a salsa, o calipso, o mambo, o samba. Da mesma forma, esses ritmos estão sendo influenciados pelo ritmo break do hip hop. Como explica Christian Béthune, em seu livro “Le Rap: une esthétique hors de la loi”, jazz e rap são musicalidades afro-americanas e seus ritmos se misturam num processo não de continuidade, mas de osmose.

Desde a década de 70, a música popular vem sendo um porta-voz que estabelece as relações entre os diferentes sujeitos que integram a sociedade. O hip hop, especialmente em sua expressão vocal, música, dá continuidade a muitas manifestações de protesto que tinham na música seu aliado.

Como enfatiza Christian Béthune, a sonoridade dos vocábulos, a telecopagem das palavras e a liberdade em si abrem perspectivas estéticas propiciadas por essa nova forma de cultura, de expressão estética cultural. No rap, a palavra reencontra o prazer de ser simplesmente pronunciada, falada sem censura. O rap é um epifenômeno de expressão urbana a partir de condições econômicas e sociais vivenciadas pelas novas populações excluídas e agregadas às grandes cidades, que discrimina e agride os diferentes, sem posses, sem acesso às mídias dominantes, sem posição social ou política de destaque.

A encenação do hip hop é dessa forma um rito de união de diferentes povos que habitam os espaços de exclusão das grandes cidades. Organiza-se como performance teatral, que em torno do grafite, da dança e do rap integra a diversidade social e, hoje, representa a identidade dos habitantes das periferias.
Das origens ao Brasil

De origem jamaicana, essa manifestação comportamental surgiu entre os jovens descendentes da África negra que habitavam as montanhas da Jamaica e cultuavam, desde os anos 30, o então imperador etíope Haile Selassié, conhecido como RAS TAFARI MAKONNEN, deus sol. Interpretando esse deus soberano como um profeta bíblico, esses jovens sonhavam com o Zion negro, que se eclipsaria sobre a dominância branca e lhes permitiria voltar para a África Natal.

Familiarizado com os sons nativos de seu país, Kool Herc começou a tocar no Clube Hevalo e no Executive Playhouse, no Bronx, em New York, e logo introduziu novas formas de musicalidade ao regae, dando origem ao rap. Ao invés de simplesmente tocar as trilhas existentes, Kool Herc, que era um grande colecionador de discos de vinil, começou a pesquisar trilhas antigas e tocá-las de maneira inversa, quebrada, estendendo o som até parecer uma nova trilha. scratching foi como ficou conhecido esse som e DJ (disc jockey) o músico que comanda esse som. Além disso, Kool Herc convidava seu amigo Coke La Rock como seu mestre de cerimônias - MC, que introduzia e comentava as trilhas sonoras que falavam da violência e da situação política das favelas, além de outros assuntos de interesse da comunidade, como sexo e drogas. Segundo Nelson George, autor do livro Hip Hop America, La Rock não era muito eloqüente em seus slogans, mantinha-se mais numa balada jamaicana, mas acabou criando algumas frases que se tornaram slogans do hip hop, tais como: “Ya rock and ya don’t stop”, Rock on my mellow!”, “To the beat y’all!”.¹ Essas frases, pronunciadas seguindo as quebras do som do vinil invertido, deram origem à telecopagem das palavras, poesia e estética da poesia do Rap.

Com o sucesso de suas apresentações, Kool Herc levou seus concertos para as ruas, em cima de pickups, e introduziu no Bronx a tradição das festas de rua jamaicanas, organizadas em torno de competições sem violência.

Assim, nascido na Jamaica e logo migrado para os USA, o rap introduziu uma nova forma de expressão musical, que logo se internacionalizou.

Entretanto, para melhor entendermos a hibridização cultural que esse movimento artístico fez aflorar em nossa contemporaneidade, resta aqui destacar o afro-descendente Afrika Bambaataa, que também cresceu no Bronx e, em 1974, fundou a Zulu Nation, grupo que se mantém atuante até os dias de hoje, quase 30 anos depois. Em sua adolescência, Bambaataa era colecionador de discos e, freqüentando os shows de Kool Herc, percebeu que seus discos eram os mesmos que Herc tocava em seus shows. Bambaataa passou a ser, ele também, um DJ que animava festas à moda de Herc. Ainda que Afrika Bambaataa tenha começado com os mesmos discos, logo introduziu em suas performances trilhas Africanas, Caribenhas e D.C. go-go, dando às suas apresentações um caráter multiétnico. Com isso, Afrika Bambaataa passou a agregar adolescentes de todas essas nações que viviam no Bronx e eram rivais por suas diferentes nacionalidades. Desde 1974, integram a Zulu Nation DJs, vocalistas, grafiteiros e break performáticos, adolescentes de muitas nacionalidades, que atuam no urbano através de suas expressões artísticas performáticas e vão sempre introduzindo seus ritmos no rap.

Em sua recente visita ao Brasil, setembro de 2002, quando de uma entrevista na “Casa de Cultura Criança Esperança”, no Jardim Angela, SãoPaulo, Afrika Bambaataa disse que “à medida que o hip hop foi viajando com a Zulu Nation ao redor do mundo, outros ritmos foram sendo incorporados”. Exemplo disso é o universo do jazz e do soul. Seus ritmos podem ser considerados como ascendentes diretos do rap. jazz, soul e rap e todos os ritmos oriundos das musicalidades afro-descendentes. Como blackthought, ragtime, blues, funk, gospel, samba e salsa são ritmos que se enriquecem mutuamente e são interpelantes da cultura dominante.

Aqui vale lembrar que nos USA, bem como em todos os outros países latinos americanos, a expressão musical dos afro-descendentes vem constituindo uma coisa indissociável não só de todos os ritmos nascidos no continente americano, mas também da raiz de toda a manifestação cultural original desses países. São músicas criadas pelos povos de origem africana e traduzem o elemento crucial da cultura africana, sua oralidade. A exemplo da Zulu Nation, muitos outros jovens das periferias das grandes cidades viram na dança, nos grafites e, especialmente na música, trilha e letra, uma nova forma de expressar seu inconformismo, suas críticas, sua estética.

Segundo André Luis Martins, o break foi encenado no Brasil, nos anos 70, com o grupo funk & Cia, grupo soul, que lançou nas ruas de São Paulo a arte de dançar e novos estilos de robótica, pop e break. O ponto de referência eram as escadarias do Teatro Municipal. Logo o grupo começou a procurar lugares abrigados da chuva, e as estações de metrô Tiradentes e São Bento passaram a ser os pontos escolhidos para os encontros. Mas as danças de rua e o rap foram percebidos aqui no Brasil mais a partir dos anos 80, quando as revistas e os discos sobre o movimento hip hop nos USA começaram a circular e outras foram editadas aqui no Brasil e vendidas especialmente na Rua 23 de maio, em São Paulo. Os pioneiros do movimento foram Nelson Triunfo, Thaíde & DJ Hum, MC/DJ Jack, os Metralhas, Racionais MCs, Jabaquara Breaks e os Gêmeos. Logo outros grupos passaram a se integrar ao movimento hip hop. Com a primeira vinda de Afrika Bombaataa ao Brasil, em 1983, o hip hop nacional começou a se organizar em torno de gangs e eventos.
Rap, música e poesia

Ainda que seja difícil pensar rap sem a dança break, elemento quase que inseparável nessa linguagem contemporânea - o rap é uma expressão também do corpo, como em toda a música e cultura africana -, este ensaio se restringe à análise do rap na sua expressão musical.

Pensar musicalmente o rap significa, em primeiro lugar, pensá-lo como música de ruptura dos padões acadêmicos institucionalizados a partir de modelos eurocêntricos estabelecidos desde os tempos gregos e que se estabeleceu como música erudita. Música de procedência popular e de influência africana - como já mencionado anteriormente -, a exemplo da música pop, o rap é executado em compasso quaternário, sendo que não há preocupação de melodia nos versos. A musicalidade está na linha rítmica dos versos declamados, quase todos sincopados. A harmonia demorou algum tempo para começar a aparecer no rap, e até nos dias de hoje pouco é usada. A intenção harmônica é função do baixo e da melodia executada pelo sintetizador. Com forte influência da música Funk, anos 70, (George Clinton, Porliment, Funkadelia e The Meeters), há no rap a presença de bateria com caixa no tempo dois e do bumbo, que bate sempre junto com o baixo, criando o chamado “groove” ou “gingado” .

Ainda que sem preocupações acadêmicas, e principalmente pela negação dessas fórmulas prontas, a contribuição do rap na música contemporânea acontece na inovação tanto de sua forma quanto do seu conteúdo - na sua oralidade e tecnicidade como formas inseparáveis. O rap caracteriza uma nova forma de comunicação. Como diz Christian Béthune, “da mesma forma que o rap reorganiza o som, o rap reinventa as palavras e faz um jogo entre oralidade e escritura, utilizando uma estratégia poética que reelabora a idéia de que uma linguagem exclui a outra, que oralidade e a escrita são linguagens irreconciliáveis.”

No rap, os versos se diversificam e são classificados por alguns rappers em nove estilos - cronista, intelectual, romântico, livre, rua, raga, radical, festa, gospel - , mostrando, assim, já nas letras mesmo de suas músicas toda a multiplicidade.

E, ainda, nas palavras de Christian Béthune, “esse sincretismo cultural, que Permite expressar estéticas milenares enraizadas nas manifestações orais e seu desbobramento com os complexos sonoros eletrônicos constitui uma nova forma de comunicação de dimensão planetária onde se expõe estilos de vida, de concepção de mundo, de profissão e, especialmente de subjetividade.

Ao executar novos procedimentos musicais que rompem com a harmonia prévia do disco já gravado, em lhe modificando para criar um novo, o DJ não está produzindo música no sentido clássico convencional, isto é, a partir de uma escala musical harmonicamente concebida onde se produz frases musicais e peças musicais. Ao romper com a tradição do texto-teia das sete notas que se encadeiam em harmonia melódica, o rapper produz a não música, já que não há mais escala sonora, frase musical ou melodia. Entretanto, é nesse processo mesmo de criar a não-música que os DJs criam novos sons, sons sem escala, sem notas, sem harmonia ou melodia, mas carregados de significados simbólicos, de modernidade de cultura e de comunicação.

Assim, atendendo às necessidades comunicativas, especialmente de protesto de cada comunidade periférica, esse estilo, hoje já globalizado, é traduzido nas possibilidades técnicas e nos anseios localizados. Percebe-se, nesse processo, o que Massimo Canevacci denominou o processo Glocal, conflito entre global e local, ou seja, “processo de unificação cultural - um conjunto serial de fluxos universalizantes – e pressões antropofágicas ‘periféricas’ que descontextualizam, remastigam, regeneram.”4 Isto é, um mesmo texto é produzido ou lido em muitas localidades ao mesmo tempo, mas lido e produzido a partir de seus códigos, com os referenciais próprios de cada cultura que o recebe e/ ou refaz.

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