Em volta de uma grande roda, homens negros tocam tambores, entoam canções em homenagem a santos católicos, desfiam casos de amor e provocam outros cantadores. No meio, mulheres trocam passos miúdos e rodopiam para um lado e para outro com suas saias coloridas. Ao compasso das melodias, de gritos e palmas, dão umbigadas e convidam outras dançarinas, que cumprimentam os tocadores e também se exibem em círculos.
É assim que os grupos de tambor-de-crioula se apresentam em festas e terreiros de São Luís, no Maranhão. A brincadeira, que no passado foi perseguida e estigmatizada como “vestígio da escravidão”, resistiu, espalhou-se por todo o estado e nos últimos anos chegou a diferentes cidades do país e até mesmo ao exterior.
Dizem que São Luís é uma cidade “que dorme ao som dos tambores”. Mas como sua elite se pretende “branca”, muitos não sabem distinguir que sons são esses. Até hoje existe confusão entre o tambor de Mina e o tambor-de-crioula. O primeiro é o nome mais comum para designar a religião afro-maranhense. O termo Mina vem do Forte de El Mina (ou São Jorge da Mina), antigo empório português de escravos na Costa da Mina, atual República de Gana. Por ser um elemento importante nesse culto religioso, o tambor foi incorporado ao nome da prática. Como as outras religiões afro-brasileiras, o tambor de Mina é caracterizado pela presença do transe ou possessão de entidades espirituais sobre as dançantes, em sua maioria mulheres.O tambor-de-crioula, por sua vez, é uma dança popular. Incorpora alguns elementos católicos e da religiosidade afro-brasileira, mas não inclui obrigatoriamente o transe ou possessão. Freqüentemente é realizada como forma de pagamento de promessas a São Benedito (santo negro) e a outros protetores católicos ou entidades cultuadas nos terreiros. Nessas ocasiões, as mulheres carregam nos braços ou na cabeça a imagem do santo de devoção. Mas, normalmente, a dança é puro divertimento.
Trazido pelos escravos de diversas regiões da África – como Guiné, Costa da Mina, Congo e Angola – que desembarcaram em terras maranhenses entre os séculos XVIII e XIX, por um longo tempo o tambor-de-crioula foi proibido pelas autoridades. Mesmo depois de acabada a escravidão, as diversões populares continuaram controladas pela polícia, à qual se devia pedir licença e pagar taxas para a realização dos festejos. Na sociedade maranhense, prevalecia o preconceito. Jornais locais registravam inúmeras reclamações contra os divertimentos de negros. Só em 1938 é que Mário de Andrade faz a primeira documentação sobre a dança, em sua Missão de Pesquisas Folclóricas, registrando manifestações populares do Norte e do Nordeste do Brasil.
Danças que incluem a umbigada (denominada semba em Angola) se disseminaram em várias partes do país, em variações como lundu, baiano, coco, samba e jongo. Mas o isolamento geográfico do Grão-Pará e Maranhão desde os tempos coloniais resultou nas características peculiares do tambor-de-crioula. O ponto forte é mesmo a umbigada – ou punga – momento em que as coreiras (nome dado às dançarinas) se encontram, fazem saudações aos brincantes e chamam uma substituta para entrar na roda. Três tambores formam o conjunto conhecido como parelha, confeccionados com madeira de mangue, sororó, pau d’arco, angelim ou faveira. Para não sair do tom, o tronco deve ser cortado em períodos de lua minguante e recoberto com couro, de preferência de cavalo ou boi. Depois, é necessário atá-lo com cravelhas e amarrá-lo com corda ou couro. Os instrumentos são afinados no calor do fogo. Vem daí o dito popular preconceituoso: “O tambor-de-crioula é afinado a fogo, tocado a murro e dançado a coice”.
Os homens comandam os toques e puxam os cantos. Quem está de fora às vezes não entende as letras e acha que se trata de alguma língua africana. “Mistura-se um canto plangente, uma toada monótona, em que se repetem por horas e horas as mesmas palavras sem nexo”, escreveu Ozimo Carvalho em 1957, em texto comemorativo do bicentenário do município de Viana. Ele estava enganado. Como nas canções das sociedades ditas primitivas, as palavras são mais importantes do que a melodia, que é construída em cima delas. São difíceis de entender porque pronunciadas com um sotaque todo próprio, cheio de regionalismos e termos arcaicos. “Beiro bera má”, ou simplesmente “berô”, tem o sentido de “correu na beira do mar”. “Poierô” é levantou poeira. “Sou boiadô”, sou boiadeiro. Banzeiro é onda alta. Catraio, barco pequeno. Cofo, cesto. Paidégua, grande. E assim por diante...
Há cânticos de auto-apresentação e saudação (Eu sou filho da pelaja, / eu nasci no pelejá /Quando tu não souber, / me chama pra te ensiná), auto-elogio (Eu nunca cantei na festa / pra outro fama me vencê / E porque eu sei vencê / canto até o sol raiá), referência e homenagem a santos e outras entidades sobrenaturais (Meu São Benedito eu sou seu escravo / se´u morrer nos seus pés /eu sei que serei salvo), sátiras e descrições de fatos cotidianos (Alô quem mandou arriá bandeira/ (...) Quem mandou arriá, nesse brinquedo de tambor/ Quem mandou arriá, eu sou mais meu batalhão), recordações amorosas (Eu já fui no seu jardim/ chorei couro, eu já sei como ele é / chorei couro, eu não quero ser chamado / chorei couro, de foguete de mulher), desafios entre cantadores e despedidas (Vou cantar mais tu Felipe / até o dia rompê / se tu apanhar não esquece / que pra mim tu foi perdê).
Embora essas características estejam presentes em quase todos os grupos, o tambor-de-crioula apresenta variações, especialmente no interior. Em cada região há um ritmo diferente de toada, um modo peculiar de tocar, dançar ou se vestir. Boa parte das composições tem relações sutis com o bumba-meu-boi, a música popular e o samba de carnaval. Mas os cantadores e tocadores não se deixam levar tanto pelas influências externas. O melhor tocador é aquele que segue a forma mais tradicional, fiel às antigas raízes. E para cantar bem deve manter a voz muito compreensível e potente, mais alta que a percussão.
Enquanto em São Luís pessoas mais novas, sobretudo as meninas, participam das apresentações, nas cidades interioranas as dançantes são todas mulheres mais velhas. Em lugares do interior, ao lado da dança das coreiras, alguns homens executam pernadas ou rasteiras, também chamadas de pungas de macho, para derrubar companheiros ao chão. É por isso que alguns chegam a comparar a brincadeira com a capoeira. Em outros grupos, os homens fazem movimentos de corpo acompanhando a dança, e no Vale do Itapecuru, em certas ocasiões o tambor-de-crioula é realizado no cemitério, em homenagem a um morto. Tanto nas áreas rurais como na capital, a população negra e de baixa renda continua a predominar nas danças e nos toques, embora, nos últimos anos, mais pessoas brancas e com maior poder aquisitivo venham entrando na roda.
Só em São Luís funcionam atualmente cerca de 80 grupos cadastrados em órgãos oficiais. Cada um conta com 20, 30 ou até mais brincantes, entre homens, mulheres e crianças. No interior, também são muitos os praticantes. Sem data fixa, suas apresentações acontecem durante o ano inteiro, inclusive no período junino e no carnaval.
Tem gente que até hoje não vê o tambor-de-crioula com bons olhos. Fruto, ainda, do velho preconceito e da perseguição à cultura afro-brasileira. Ainda assim, essa genuína manifestação maranhense vem conquistando cidades do Brasil e do mundo, levada por músicos, artistas, estudantes, jornais, revistas e órgãos públicos. Principalmente depois que foi reconhecido pelo Iphan, em junho de 2007, como patrimônio imaterial brasileiro.
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