quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A UNIVERSAL MÚSICA BRASILEIRA

Há na musicalidade brasileira um estilo simultaneamente brincalhão e desafiador, exibindo audácia e virtuosismo, isto de forma graciosa e, principalmente, interesseira, individualista e maliciosa. Trata-se de um gesto profundo, impresso já na gênese de alguns gêneros, como o choro. Por exemplo, no final do século XIX e início do XX, período de gênese do choro, o flautista, solista do grupo, usualmente era o único músico que sabia ler partitura, e sua performance era marcada por frases modificadas em relação ao original, como que desafiando seus acompanhantes a segui-lo (DINIZ, 2003). Alguns mecanismos e frases musicais revelam este lado brincalhão, isto de forma a exibir algum virtuosismo instrumental. De fato, trata-se de um conjunto de tópicas que chamarei de brejeiro. O brejeiro na musicalidade brasileira é brincalhão, difere do gesto que se entende por scherzando, por seu caráter menos infantil e mais malicioso e desafiador. A figura do malandro na cultura carioca e brasileira em geral alude a este tópico: o malandro que ginga com os pés, é esperto e competente (na ginga), desafiador (quem me pega?). A expressão musical deste caráter da brasilidade se dá através das tópicas brejeiro, que envolvem transformações musicais presentes, inicialmente, no choro. Os flautistas de choro e suas variações melódicas que desafiam seus acompanhantes a não se perder na música, alguns temas de Pixinguinha (o início e certas passagens de “Um a zero”), Ernesto Nazareth (“Apanhei-te cavaquinho”; aliás, este título expressa a brejeirice do cavaquinho). Muitas vezes está em jogo um tipo de “ataque falso” de nota, no qual um “deslize” cromático no agudo faz crer que houve erro, e no entanto se trata de uma transformação brejeira. Outras vezes, o tópico se manifesta mais na dimensão rítmica, como é o caso de certas “quebras” e deslocamentos irregulares que parecem brincadeiras rítmicas que, desafiadoramente (para os acompanhantes e ouvintes), atravessam os tempos como que brincando, sem se deixar perder.

Há um outro conjunto de tópicas, que estou designando “época de ouro”, no qual reinam os maneirismos das antigas valsas e serestas brasileiras, impera a nostalgia de um tempo de simplicidade e lirismo, de ruralidade e frescura. Um pouco do mundo lusitano está presente aqui, nas evocações do fado e na singeleza das modinhas. Como se fosse um mito, manifesta-se aqui um Brasil profundo, vindo do passado através de volteios e floreios melódicos (vários tipos de apojaturas e grupetos), padrões rítmicos (maxixe, polka, dobrado estilo “banda”) e certos padrões motívicos (escala cromática descendente atingindo a terça do acorde em tempo forte) que estão fortemente presentes no mundo do choro e em vários outros repertórios de música brasileira, tanto na camada superficial quanto em estruturas mais profundas.
Das “Valsas de Esquina”, de Francisco Mignone, a certos trechos de composições de Hermeto Pascoal, as tópicas época de ouro se apresentam com melodias em primeiro plano, em estilo cantabile, sempre com lirismo e nostalgia.

Outro conjunto de tópicas é o nordestino: a musicalidade nordestina é um recurso fortemente empregado na expressão da brasilidade (PIEDADE, 2003). Desde cedo este Nordeste profundo se apresentou musicalmente ao Brasil em diversos repertórios musicais. O baião e a escala mixolídia, usada mediante uma série de padrões, se tornaram índice da identidade brasileira, por exemplo, nas composições nacionalistas de Camargo Guarnieri e de outros compositores que se opunham ao atonalismo do movimento Música Viva dos anos 40.


A análise musical mostra que tópicas brejeiro, época de ouro e nordestino são articuladas de forma intensa em diversos repertórios da música brasileira erudita e popular.


Além deles, pode-se apontar para alguns outros conjuntos: a presença da musicalidade do jazz permeia várias esferas da música brasileira. Na investigação da chamada “musica instrumental”, ou jazz brasileiro, caminha-se em direção a um conjunto de tópicas bebop, de acordo como uso específico deste termo entre músicos brasileiros (ver PIEDADE, 2003, 2005); o universo afro-brasileiro constitui um conjunto de tópicas afro, presente nos batuques, lundus, jongos, etc.


Outros conjuntos a serem mencionados são: tópicas sulinas (envolvendo a música tradicional das terras gaúchas e gêneros musicais argentinos, uruguaios e paraguaios tais como guarânia, chacarera, milonga, tango, etc., envolvendo especialmente a superposição rítmica de 3 contra 2 tempos); tópicas caipiras (que evocam o mundo rural conforme a imaginação do Brasil do sudoeste e central, tendo a figura do caipira e seus duetos em terças e sextas paralelas, bem como os ponteios da viola caipira como referenciais mais evidentes); outros possíveis conjuntos a serem investigados: tópicas ameríndios (principalmente no uso de flautas nativas e de percussão do tipo “pau-de-chuva”); árabe (mais recentes, com a influência da world music, principalmente através de escalas e ornamentações); oriental (pentatonismo); experimental (especialmente na exploração timbrística); atonal (evocando um cultivo erudito de “vanguarda”); tropical (estratégias icônicas denotando as florestas e a exuberância tropical, como os pássaros em Villa-Lobos). A listagem certamente não se esgota aqui, dada a dimensão continental da musicalidade brasileira.


Acredito que na música brasileira, independentemente da oposição popular/erudito, uma retórica se faz presente, articulando tópicas que colocam em jogo identidades e referências culturais que constroem um universo musical entendido como brasileiro. Assim, creio que se pode levantar conjuntos de figurações que se apresentam tanto em Egberto Gismonti, Chico Buarque e Pixinguinha quanto em Villa-Lobos, Guerra-Peixe, Cláudio Santoro, entre tantos outros. Afirmo, portanto, o rendimento de investigações da dimensão expressiva da música brasileira, bem como da análise musical detalhada dos textos musicais deste vasto repertório, desta forma contribuindo para dissolver as fronteiras entre o mundo erudito e popular. A perspectiva retórica e a “teoria das tópicas” representam orientações de análise musical que superam o mero formalismo, ao envolver simultaneamente conhecimentos musicais e interpretações histórico-culturais. Desta forma, funcionam como via de acesso à significação e aos nexos culturais em jogo na música brasileira.



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