Até hoje uma amiga comenta: "É mesmo, os tempos mudaram. Eu também era esquálida e todos me achavam gostosíssima. Agora eu tenho o corpo da Matilde Mastrangi e ninguém repara". E pano rápido. Porque gostosa mesmo era a Gal. O símbolo da gostosura dos seventies, dos 70. Engraçado, editor pensa que colaborador é repentista. Dá um tema e a gente sai cantando. Em disparada, na maior embolada. E na maior embolada, no ritmo rápido e rap do repente eu vou cantar pra vocês as dunas da Gal, uma verdadeira lisergia tropical.
É que outro dia eu estava na Rádio Cultura comentando o disco da Gal, o LeGal, quando me perguntaram o que eu estava fazendo no início da década de 70. Ai minha Santa Periquita do Bigode Louro, santa ingenuidade! É claro que eu não estava fazendo nada. N-A-D-A. Nada! A maioria das pessoas na década de 70 não fazia nada. Só faziam a cabeça. Como eu, que tinha de fazer e bater a cabeça todas as manhãs nas dunas da Gal., vulgo dunas do barato, píer de Ipanema. Depois eu tinha que esticar na areia minha sábia preguiça solar e bolar alguns capítulos do meu livro-espetáculo Folias Brejeiras. E depois tinha de fazer a chamada pra ver se ninguém tinha pirado no dia anterior. E depois tinha de bater palmas pro pôr-do-sol. Sair da praia antes do pôr-do-sol era blasfêmia! E ainda por cima tinha que ir em romaria todas as noites assistir o show Gal a Todo Vapor. Era Pouco? Ufa! Bem que o Groucho Marx tinha razão quando disse: “Como sofre uma baiana”.
Gal a Todo Vapor, o grande sucesso da temporada, todas as noites, lá no Teresão. A todo vapor mesmo. Era só a banda dar os primeiros acordes que a turma das dunas desfiava o resto, de cor. E pior, ninguém queria pagar. Pagar era um insulto. O teatro era o Teresa Raquel, vulgo Teresão, lá em Copacabana. E o diretor do show era o Waly Salomão. E dá-lhe convites. Principalmente quando descia o Morro de São Carlos com o Melodia e toda aquela roda de bambas e compositores de sambas. E ficavam na porta. Aí o Waly dava uns abraços psicodélicos na Teresa Raquel e ficava falando loucuras no ouvido dela. Ai convite virava chuva de confete. Os convites eram tantos que a Teresa Raquel ficava nervosa, andando pelo saguão do teatro, num cáften até os pés, gritando: “ Eu não sou Jesus Cristo”.
E numa dessas noites, ao som da Gal, ao som da dona dos mais belos trinados do planeta, eu e Jorge Salomão tivemos a brilhante idéia de combinar nossas roupas com o cenário da Gal. Seria um happening. Era como se fosse uma extensão do próprio cenário. E fomos lá e catamos os restos de cetim do cenário criado pelo Luciano Figueiredo e Oscar Ramos, medimos bem e chegamos à conclusão: Dá! E fizemos duas camisas maravilhosas, de cetim. A minha era dourada. Pra combinar com a palavra-destaque também dourada lá do fundo do palco: FA-TAL. A do Jorge era branca. Pra combinar com a palavra-destaque branca: VIOLETO. E estava formada a dupla de destaque, um par de jarros. Fatal e Violeto.
E Gal corria de um lado pro outro do palco cantando. E encantando: “Vejo o Rio de Janeiro”. Lábios vermelhos, de fogo: “Vejo o Rio de Janeiro”. Um sol.
Um sol. Pois é. Acho que tudo começou num dia de sol, quando Gal saiu de sua casa na Farme de Amoedo em direção à praia e resolveu estender sua toalha e sua plástica bem em cima de um monte de areia, uma duna, ao lado do píer de Ipanema. Pronto. A crème de la creme da lisergia tropical se apinhou a sua volta, fervendo, a festa já preparada, estava lançado o point mais badalado dos anos 70, o auge da contracultura: as dunas da Gal ou as dunas do barato ou, para os mais íntimos, o morro da Gal. Ainda bem que ela escolheu Ipanema. Tivesse escolhido a praia de Ramos, nós estávamos fritos. Já imaginaram aquela turma de calção e cabelão e frutas e discos e livros e idéias e slogans e palavras de ordem e colares, horas dentro de um ônibus? Não ia dar certo. Ou ia.
O caso é que, onde Gal ia, todo mundo ia atrás. Gal era quieta. Mas sua presença acionava o motor. Ou melhor, o rotor. Porque o babado era quente. Não era só o sol que se escancarava. Tudo ali se escancarava. As cores, as pessoas, as fofocas, os namoros, e as comportas do comportamento, escancaradas. Mas Gal ficava lá, quieta. Semideitada, como uma maja desnuda tropical, com os cotovelos enfiados na areia, fitando o infinito, o horizonte, lá onde o azul do céu se encontra com o azul do mar e o barquinho vai e o barquinho vem.
Todo mundo ficava em pé. Ninguém sentava. Só a Gal. Em pé conversando e conversando. Não sei o que tanto a gente conversava. Acho que bolando um novo espetáculo. E o Cazuza louco pra se enturmar. Ficava na toalhinha vizinha, louco pra se meter na conversa. E as pessoas começaram a levar frutas para a praia, talhos de melancia, cachos e mais cachos de uvas, mangas e seringuelas, verdadeiros banquetes tropicais. Era a alegria, o barato. Ondas eram plumas. E no dia em que Brian Jones morreu, Vilma Dias apareceu com uma camiseta onde se lia Brian Jones is dead, em vermelho!. Ela deve ter pintado em casa, às pressas, com esmalte. Nunca vi tantas idéias. Verdadeiros vulcões. As pessoas se alimentavam de lançamentos. Quando Gal se levantava, negra de sol, pra ir embora com aquela cesta indígena na cabeça, era uma deusa. Pra mim, ela era Elvira Pagã. Tudo ela levava naquela cesta indígena, de palha. Toalha, cocker spaniel, filtro solar, as chaves da Fiat vermelha, o telefone do João Gilberto, a partitura de Vapor Barato, recados, torpedos. Não sei que milagre que ela não botava até o Waly lá dentro. Botar a Cotinha e o Moleque Pereira, a Maria Guilhermina enrolada na bandeira do Flamengo, o Mautner, o Jacobina, o Melodia, a Pinky Wainer, a Scarlet Moon, e o Steve que atropelava táxis. E o Jorge Salomão, o Bacana e a Puppy. E o Anjo. Ela devia botar a duna inteira lá dentro da cesta. E levar pra oca dela. Lá na Ladeira do Tambá. Que todo mundo ia adorar. Todos de tanga, sunga, quase nada. O chic era deixar um pouco dos pentelhos de fora, um tufo, aparecendo. E a barriga bem pra dentro, estilo faquir, ou no máximo uma barriga bronzeada e torneada como um mamão papaya.
Ninguém cumprimentava quem ousasse usar relógio. Um dia um amigo, de tanto a mãe insistir, arrumou um emprego. E tinha que sair da praia às três da tarde. Isso mesmo, às três da tarde! Era uma heresia. Isso era considerado um crime. E o coitado saia meio escondido, envergonhado. Era uma heresia abandonar aquela orgia SOLAR, ingênua e sensual. A geração Gal. Quando hoje me perguntam qual a minha geração, eu respondo: “Eu sou da geração Gal!” E ponto final. Porque tudo isso aconteceu quando eu era um bebê de colo. É que eu não gritava buábuá buá. Eu gritava Gal, Gal, Gal. A todo vapor?
Um comentário:
Adorei o texto! Me senti no meio dessa galera pois com meus amigos vivíamos ouvindo a Gal e conversando horas a fio.
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