quinta-feira, 13 de agosto de 2009

As Meninas [Lygia Fagundes Telles]


- Desde ontem ela não aparece. Telefonou dizendo que está na chácara do noivo.

- Noivo. A senhora me desculpe, Madre Alix, mas Ana é o produto desta nossa bela sociedade, tem milhares de Anas por aí, algumas agüentando a curtição. Outras se despedaçando. As intenções de socorro e et cetera são as melhores do mundo, não é o inferno que está exorbitando de boas intenções, é esta cidade. Vejo a senhora sair com outras senhoras bondosas dando sopinha aos mendigos. Bons conselhos, cobertores. Eles bebem a sopinha, ouvem os conselhos e vão correndo trocar o cobertorzinho pelo litro de cachaça porque o dia amanheceu mais quente, pra que cobertor? Tudo continua como na véspera com uma noite de demência a mais fornecida pelo donativo. Um padre nosso amigo foi ensinar catecismo à menininha de nove anos que o pai vendeu pro bordel e quase morreu de tanto apanhar do agregado da proprietária. Aprendeu a lição, ô se aprendeu. Caridade individual é romantismo, cheguei a essa conclusão não faz muito tempo. Agora ele funciona com a gente mas dentro de outra perspectiva. Nos esquecemos, nos descuidamos, diz Bela Akmadulina. E tudo caminha ao contrário.

Vou até a garrafa térmica e me sirvo de mais café mas queria um sanduíche. Presunto e queijo. Uma abelha se debate contra a vidraça e de repente seu zunido fica mais importante do que nossa fala. Mas de onde veio essa abelha numa noite dessas? Gostaria de escrever como ela faz mel. E quase me dobro num riso desatinado, era bem doidona a cigarra da fábula com suas cantorias mas a formiga de vassoura na mão não ficava atrás.


- Tinha tanta coisa que lhe dizer, filha. E já nem sei por onde começar. Essa sua política, por exemplo. Me pergunto se você está em segurança.

- Segurança? Mas quem é que está em segurança? Aparentemente a senhora pode parecer muito segura aí na sua redoma mas é bastante inteligente pra perceber do que essa redoma está lhe protegendo. Alguns padres romperam o vidro como aquele de que lhe falei. Por acaso estão em segurança? Não. Nem estão pensando em segurança quando se deitam no colchão sem travesseiro ou quando rezam suas missas num caixote feito altar.


Ela sorriu. Um sorriso triste que me arrependi de provocar.


- Mas não estou na redoma, Lia. É neste ponto que você se engana como se enganou também quando disse que eu queria lhe apontar a porta. Deus sabe que meu desejo maior é protegê-la e guardá-las para sempre, como se isso fosse possível. Se não interfiro, se não me aproximo é porque não quero que pensem em vigilância, fiscalização. Vocês bateriam as asas mais depressa ainda.

Pronto, magoou-se. Essa minha mania de discurso, baiano com subversão pode dar noutra coisa?

- Não sei explicar, Madre Alix, mas o que queria dizer é que embora resguardada a senhora luta a seu modo, respeito sua luta. Respeito até a luta dos que querem nos destruir, respeito sim senhora, eles estão na deles. Como estamos na nossa, enfraquecidos, traídos, divididos, não calcula como estamos divididos. Mas vamos aguentando. Um que fique tem que correr como um cão danado pra passar o facho ao seguinte que recebe e sai correndo até o próximo que nem estava na corrida, entende. De mão em mão. É demorado mas não estamos mais com tanta pressa.

- Facho, Lia? Você fala em facho, mas o que vejo é um levar ao outro violência, morte. Um rastro de sangue é o que vocês vão deixando por onde passam. Temos um Condutor Supremo e do Seu esquema transcendente a violência foi riscada. A espiritualidade...

Olha aí, vitória da espiritualidade. Arranco uma lasca da unha que vem com um fiapo de pele. O sangue brota. Chupo o dedo. Uma bala dum-dum no peito doeria menos.


Um comentário:

Comunidade Lygia Fagundes Telles disse...

Lindo trecho, lindo livro, lindo Blog. Parabéns!!

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