sexta-feira, 5 de junho de 2009

EM BUSCA DO TEMPO DE PROUST.


Quando um homem está dormindo tem em torno, como um aro, o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao despertar, consulta-os instintivamente, e, em um segundo, lê o lugar da terra em que se acha, o tempo que transcorreu até seu despertar; mas estas ordenações podem confundir-se e quebrar-se. Se depois de uma insônia, na madrugada, surpreende-o o sonho enquanto lê em uma postura distinta da que está acostumado a tomar para dormir, bastará elevar o braço para parar o Sol; para fazê-lo retroceder: e no primeiro momento de seu despertar não saberá que horas são, imaginará que acaba de deitar-se. Se dormitar em uma postura ainda menos usual e recolhimento, por exemplo, sentado em uma poltrona depois de comer, então um transtorno profundo se introduzirá nos mundos exagerados, a poltrona mágica percorrerá a toda velocidade os caminhos do tempo e do espaço, e no momento de abrir as pálpebras perceberá que dormiu uns meses antes e em uma terra distinta. Mas a mim, embora dormisse em minha cama de costume, bastava-me com um sonho profundo que afrouxasse a tensão de meu espírito para que este deixasse escapar o plano do lugar aonde eu dormia, ao despertar a meia-noite, como não sabia onde me encontrava, no primeiro momento tampouco sabia quem era; em mim não havia outra coisa que o sentimento da existência em sua simplicidade, primitiva, tal como pode vibrar no fundo de um animal, encontrar-se em maior nudez com o homem das cavernas; mas então a lembrança, ainda não era a lembrança do lugar em que me achava, mas, o de outros lugares aonde eu tinha vivido e aonde poderia estar. Descia até mim como um socorro que tivesse chegado do alto para me tirar de um nada, porque eu sozinho nunca poderia sair; em um segundo passava por cima de séculos de civilização, a imagem opaca vista das lamparinas de petróleo, das camisas com gola alta dobrada, foram recompondo lentamente os rasgos peculiares de minha personalidade.
Essa imobilidade das coisas que nos rodeiam, acaso é uma qualidade que impomos, com nossa certeza de que elas são essas coisas, nada mais que essas coisas, com a imobilidade que toma nosso pensamento frente a elas. O caso é que quando eu despertava assim, com o espírito em comoção, para averiguar, sem chegar a obtê-lo, em onde estava, tudo girava em volta de mim, na escuridão: as coisas, os países, os anos. Meu corpo, muito torpe para mover-se, tentava, fora de forma de seu cansaço, determinar a posição de seus membros para daí induzir a direção da parede e o lugar de cada móvel, para reconstruir e dar nome à morada que o abrigava. Sua memória dos flancos, dos joelhos, dos ombros, oferecia-lhe sucessivamente as imagens dos vários quartos em que dormisse, enquanto que, ao seu redor, as paredes, invisíveis, trocando de lugar, segundo a habitação imaginada, giravam nas trevas. Antes do meu pensamento vacilante, na soleira dos tempos e das formas, identificasse, engrenado às diversas circunstâncias ofereciam, o lugar de que se tratava, o outro, meu corpo, ia acordando para cada lugar de como era a cama, de onde estavam as portas, de onde davam as janelas, se havia um corredor, e, além disso, dos pensamentos que ao dormir ali preocupavam e que ao despertar voltava a encontrar. O lado de meu corpo, ao tentar adivinhar sua orientação, acreditava-se, por exemplo, estar jogado de cara à parede, em um grande leito com dossel, eu em seguida dizia: «Ah! Por fim dormi, embora mamãe não veio me dizer adeus», é que estava no campo, na casa de meu avô, morto já fazia tanto tempo; e meu corpo, aquele lado de meu corpo em que me apoiava, fiel guardião de um passado que eu nunca devesse esquecer, recordava-me a chama da lamparina de cristal da Boêmia, em forma de urna, que pendia do teto por leves correntinhas; a chaminé de mármore de Siena, no quarto de casa de meus avós, no Combray; naqueles dias longínquos que eu me figurava naquele momento como atuais, mas sem representar com exatidão; teria que ver muito mais claro um instante depois, quando despertasse, por completo.
Logo, renascia a lembrança de outra postura; a parede fugia para outro lado: estava no campo, no quarto a mim destinado na casa da senhora de Saint-Loup. Meu deus!

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