Por Kim Willsher
Ela cresceu livre na África. Será que conseguirá se adaptar à vida na cidade?
Na última cena do filme Mogli, o menino lobo, o personagem principal deixa para trás a floresta onde cresceu e entra na “aldeia dos homens”. Os amigos Balu, o urso, e Baguera, a pantera, observam. “Iria acontecer mais cedo ou mais tarde”, diz Baguera. “Agora Mogli está no lugar dele.” Para Tippi Degré, apelidada menina-mogli, não é fácil descobrir qual é o seu lugar. Faz dez anos que ela trocou a selva africana onde cresceu pela “aldeia dos homens” em Paris, mas a adolescente ainda não resolveu bem essa questão.
Hoje, aos 18 anos, ela estuda cinema na renomada Universidade Sorbonne, na capital francesa, e luta para conciliar os dois mundos tão diversos onde viveu.
“Ela teve uma infância extraordinária na África”, explica sua mãe, Sylvie Robert. “Era um mundo mágico que, para ela, representava a felicidade perfeita. Depois, teve de vir para Paris estudar, onde encontrou uma realidade bem diferente. Acho que Tippi sente que a África foi arrancada dela, e isso lhe causou dor e uma tristeza profunda. Ela nunca se queixou, nunca conversou sobre esse assunto. Foi simplesmente como se uma parede desmoronasse.”
A mãe continua o relato:
“A primeira reação de Tippi foi se sentir encurralada com a falta de espaço na cidade. Ela dizia: ‘Maman, é estreito demais entre os prédios. Não consigo ver o céu.’ Nunca tive medo de deixá-la solta na floresta, porque ela estava acostumada àquela vida e às regras do mundo selvagem, mas a vida urbana é cheia de perigos.”
Tippi Benjamine Okanti Degré nasceu em 1990, em Windhoek, capital da Namíbia, e recebeu o nome da atriz americana Tippi Hedren, estrela do filme Os pássaros, de Alfred Hitchcock. No dialeto namibiano, okanti é o nome do suricato, pequeno mangusto que levou os pais, Sylvie Robert e Alain Degré, fotógrafos autônomos da vida selvagem, ao deserto do Kalahari.
As fotografias que tiraram da filha pequena e descabelada interagindo com os bosquímanos, brincando com animais selvagens, andando nua pelas dunas do deserto e perambulando na mata vestindo apenas uma tanga durante as viagens pelo sul da África encantaram o mundo.
Tippi era uma filha da natureza. Seu parque de diversões eram a floresta e o deserto, seus amigos, os grandes felinos, elefantes, cobras, avestruzes e as outras criaturas que lá viviam.
As fotografias se transformaram em Tippi: Mon livre d’Afrique (Tippi: meu livro da África), publicado em 14 países.
Duas fotos na mesa de centro do apartamento da mãe, no Marais, em Paris, resumem a esquizofrenia geográfica da vida de Tippi. Numa delas, a da capa do livro, a menina acaricia um filhote de leão. Na outra, está em pé numa rua de Paris, à frente de uma parede coberta de pichações.
Sylvie, de 52 anos, diz que, em 2000, quando se instalaram em Paris, a adaptação à vida urbana foi difícil para Tippi. Num golpe duplo para a menina, a volta à França coincidiu com a decisão dos pais de encerrar o casamento de 25 anos. “Tippi tinha 10 anos, e o sentimento de ruptura foi total. Ela teve de lidar com a separação da vida que levava na África e com a separação do pai”, conta Sylvie. “Morávamos em Madagascar e voltamos à Europa para o Natal de 1999 porque Tippi, que já era famosa na época, fora convidada para participar de um programa da TV francesa. Em Paris, o pai de Tippi e eu terminamos nosso relacionamento.”
Sylvie explica que, como muitas crianças de pais separados, Tippi achou difícil entender por que o seu amado “Dadou” virou um pai ausente. “Até então, vivíamos sempre juntos, dia e noite. Primeiro, Alain e eu, e depois, quando Tippi nasceu, nós três. A vida dela sempre foi assim: nós três juntos.”
Sobre esse período, Sylvie conta apenas que foi muito conturbado e que a relação de Tippi com o pai a partir de então foi, e ainda é, complicada.
“Não nos sentamos para discutir esse assunto como fariam as famílias normais porque não éramos uma família normal. Nunca expliquei nada e ela nunca perguntou”, confessa Sylvie. “A maior preocupação de Tippi era continuar colada a mim, como fora durante a infância. Eu era o centro do mundo dela, e desde que eu estivesse a seu lado, ela se sentiria bem. Tippi via felicidade em tudo: em sua vida na África, nos animais, fossem quais fossem. Ela era tão feliz com as galinhas quanto com os guepardos. Nunca imaginou que a vida na África acabaria um dia. Quando percebeu que isso tinha acontecido, não disse nada. Tentou esquecer, pois as lembranças eram dolorosas.
Tippi costumava frequentar escolas francesas nas férias e tivera um tutor em Madagascar, mas nunca cursara um ano letivo completo. “Veja o que ela achou disso”, ri Sylvie, mostrando uma fotografia de Tippi sentada na sala de aula, atrás de uma carteira onde o estojo e os livros estão arrumados com precisão matemática. A menina não sorri. Seu rosto está quase carrancudo.
A mãe explica como foi aquela experiência:
A mãe explica como foi aquela experiência:
“Ficar o dia todo na escola foi duro.” Embora nunca tenha sido arrogante, ela era a “Tippi da África”. Paris não era o seu mundo, e ela tentou fugir. De acordo com os relatórios da escola, ela não se integrava, não falava. Sentava-se longe das outras crianças.
A menina se sentia uma estranha e teve dificuldade de fazer amigos. Em Tippi: Mon livre d’Afrique, publicado depois que voltou à França, ela escreveu: “Todo mundo tem problemas. Não tive nenhum na época em que morei na selva africana.”
Em outro trecho, ela conta: “Quando voltei à França, tentei conversar com pardais, cães, pombos, gatos, vacas e cavalos. Não deu certo. Não sei por quê. Acho que é porque o meu verdadeiro país é a África, não a França.”
“Tippi sentiu muita falta dos animais”, conta Sylvie. “Costumava correr atrás dos bichos que encontrava na cidade. Chegava até a pegar e acariciar pombos sujos.” Ela aponta o canto da sala. “Um dia Tippi encontrou um camundongo envenenado bem ali e me implorou para que eu a deixasse segurá-lo. Ficou sentada enquanto ele morria em suas mãos. Foi horrível. A separação da vida anterior foi total, mas eu não tive opção. Ela precisava estudar. Só queria o melhor para minha filha.”
Com a chegada da adolescência, esse relacionamento incomum entre mãe e filha enfrentou novas pressões. Houve as discussões típicas sobre estudos, namoro e liberdade.
“É estranho, mas Tippi achava que eu não era rígida o bastante. Eu queria lhe dar espaço para que tomasse suas próprias decisões, para mostrar amor, confiança e respeito por ela como indivíduo, e Tippi encarou isso como uma traição, como se eu a largasse enquanto ela ainda precisava de mim.”
Como a leoa e seu filhote, Sylvie é ferozmente protetora e rápida ao pular em defesa da filha única. Diz não se importar com as críticas, mas a maneira como volta ao assunto revela que talvez se incomode mais do que admita.
“Muitas pessoas, até da família, não entenderam as escolhas que fiz por Tippi, mas segui o meu coração.”
Hoje, depois de passar dois anos dedicando-se aos estudos para terminar o ensino médio e passar no vestibular, Tippi mora num conjugado unido ao apartamento da mãe por um corredor que Sylvie chama de “cordão umbilical”. Ela diz que Tippi fica insegura não só em relação ao lugar a que pertence mas também a respeito de quem é.
Sylvie escolhe as palavras com cuidado. “Tippi ainda não sabe como expressar o que viveu. Ela recorre a mim em busca de respostas. Decidi que já é hora de ela se libertar e viver a própria vida. Tenho de ajudá-la, empurrá-la com jeitinho para que tome as rédeas da própria vida.
Sylvie se cala e, como se tivesse sido combinado, Tippi entra na sala – uma figura miúda e delicada de jeans branco e camiseta também branca, aparentando menos de 18 anos.
Ela para e ralha com dois periquitos numa gaiola, Bozo e Angie, por piarem alto demais. Depois olha pela janela e se preocupa com a possibilidade de sua motoneta ser multada por estacionar em local proibido. Dois símbolos de mundos diferentes.
Anos atrás, quando chegou a Paris, perguntaram a Tippi qual era a sua nacionalidade e ela respondeu: “Sou africana.” A mãe conclui: “Não sei o que Tippi fará, mas acho impossível que a vida não a leve de volta à África. É inevitável. Lá é o lugar dela.”
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