À famosa pergunta de Freud “o que quer uma mulher?” podemos responder: livrar-se da culpa. Mas vamos devagar: o que eu, em pleno século 21, livre financeira e sexualmente, dona do meu corpo, autora do meu projeto de vida, fiz pra me sentir culpada? Embora nossa cultura já viva certa democracia entre gêneros, a culpa continua sendo característica da subjetividade das mulheres muito mais do que dos homens. Dizer “sou mulher” é quase o mesmo que dizer “a culpa é minha”.
A culpa feminina não existiu desde sempre e jamais foi essencial. Não é impossível que tenha sido inventada para que as mulheres soubessem bem qual o seu lugar em uma sociedade de homens. A filosofia não se ocupou muito da questão até que F. Nietzsche, filósofo morto na virada do século 19 para o 20, sustentou uma contundente crítica da moral vigente como análise do sentimento de culpa. Ele entende a culpa como o ressentimento que em vez de ser lançado para o outro, é dirigido a si mesmo. Ela nasce de uma obrigação de fazer promessas que se transforma em incapacidade de cumpri-las e daí passa a valer como dívida que, impagável, se volta contra quem a contrai.
O ressentimento é uma espécie de peso morto que carregamos nos ombros sem que sirva a nada além de pesar. Ora, o que carregamos é o passado que não conseguimos esquecer nas camadas mais profundas da linguagem. Mulheres contemporâneas são herdeiras de uma vasta tradição simbólica que inclui mitos como Eva, a culpada da expulsão do paraíso que implica o ditado de que por trás de um grande homem há uma grande mulher, e Pandora que se assemelha à mãe onipotente culpada dos sofrimentos de seus filhos.
Mas a coisa não para por aí. Mesmo sem ser esposa ou mãe, uma mulher que deseje ser, por exemplo, amante, pode se sentir culpada em relação ao desamor do marido ou namorado por não ter, por exemplo, o corpo que ele deseja. Perguntar a si mesma se, ao contrário, “ele a agrada” não é possível para quem sente culpa. Já que o culpado precisa sempre pagar alguma coisa que ele não está devendo. Mas o que, tão livres, tão independentes, as mulheres de hoje ainda podem dever? Por trás das armadilhas dos mitos está a idéia greco-medieval de que a mulher é um macho falido. A natureza quando não tem força pra fazer um homem faz uma mulher. Culpa de quem?
A culpa aparece assim como um artifício infinito. Uma máquina poderosa de produzir dívidas inexistentes, pois se existissem realmente bastaria pagá-las ou pedir mais prazo, responsabilizando-se pelo que, de fato, se deve. No entanto, há certo prazer na culpa, justamente o da irresponsabilidade que afasta da convivência com o desejo e coloca a pessoa no lugar de uma vítima dos desejos alheios.
Percebemos que a estrutura da culpa é paradoxal. Nos tempos da liberdade feminina, uma mulher pode se sentir culpada de não querer ser esposa, mãe ou amante, ou por simplesmente ser bem sucedida. Como se seu sucesso a tornasse devedora de marido e filhos que muitas vezes ela não tem. A culpa pode aparecer ao assumir um desejo que não lhe foi autorizado. Acontece que a culpa surge exatamente para eliminar o desejo. Está, assim, na contramão da responsabilidade.
Pode, no entanto, parecer que as mulheres se sintam culpadas por serem excessivamente responsabilizadas. Mas não é verdade. Se a responsabilidade é um valor ético objetivo que pode ser juridicamente medido, a culpa é apenas um sentimento de quem, não tendo porque carregá-lo, o faz por aceitar a posição de vítima que pode ser bem mais confortável do que a de quem se responsabiliza por seus desejos. Artificial, a culpa aparece como algo que eu lanço sobre o outro para disfarçar aquilo de que eu mesmo não posso ser responsável. O culpado culpa o outro e a si mesmo. O culpado é, assim, um covarde que se disfarça de vítima e que encontra sua comunidade de culpados, deprimidos e entristecidos contra um mundo supostamente hostil. Fica mais fácil culpabilizar os outros do que responsabilizar-se. Mais fácil endividar o outro e a si mesmo do que pagar os custos da própria vida.
Culpados aqui e ali exigem que ajudemos a carregar seus fardos. Jogam seu peso sobre os ombros próprios e os dos outros. Bem que podiam trocar tudo isso pelas asas do desejo que, em nós, estão prontas a se abrir, deixando tudo mais leve e permitindo voar e ver mais longe.
O impulso pro vôo vem da coragem da responsabilização.
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