sábado, 19 de setembro de 2009

Trecho: Sermões, Antônio Vieira.

Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda.


Considerai, Deus meu, e perdoai-me se falo inconsideradamente. Considerai a quem tirais as terras do Brasil, e a quem as dais. Tirais estas terras aos portugueses, a quem nos princípios as destes, e bastava dizer a quem as destes, para perigar o crédito de vosso nome, que não podem dar nome de liberal mercês com arrependimento. Para que nos disse S. Paulo, que vós, Senhor, quando dais, não vos arrependeis: Sine poenitentia enim sunt dona Dei? Mas, deixado isto a parte, tirais estas terras àqueles mesmos portugueses, a quem escolhestes, entre todas as nações do mundo para conquistadores da vossa fé, e a quem destes por armas, como insígnia e divisa singular, vossas próprias chagas. — E será bem, supremo Senhor e Governador do universo, que às sagradas quinas de Portugal, e às armas e chagas de Cristo, sucedam as heréticas listas de Holanda, rebeldes a seu rei e a Deus? Será bem que estas se vejam tremular ao vento vitoriosas, e aquelas abatidas, arrastadas e ignominiosamente rendidas? Et quid facies magno nomini tuo (Jos. 7,9)? E que fareis — como dizia Josué — ou que será feito de vosso glorioso nome em casos de tanta afronta?

Tirais também o Brasil aos portugueses, que assim estas terras vastíssimas, como as remotíssimas do Oriente, as conquistaram à custa de tantas vidas e tanto sangue, mais por dilatar vosso nome e vossa fé — que esse era o zelo daqueles cristianíssimos reis — que por amplificar e estender seu império. Assim fostes servido que entrássemos nestes novos mundos tão honrada e tão gloriosamente, e assim permitis que saiamos agora — quem tal imaginara de vossa bondade — com tanta afronta e ignomínia. — Oh! como receio que não falte quem diga o que diziam os egípcios: Callide eduxit eos, ut interficeret et deleret e terra
: Que a larga mão com que nos destes tantos domínios e remos não foram mercês de vossa liberalidade, senão cautela e dissimulação de vossa ira, para aqui fora, e longe de nossa pátria, nos matardes, nos destruirdes, nos acabardes de todo. Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastamos os ventos e as tempestades com tanto arrojo, que apenas há baixio no oceano, que não esteja infamado com miserabilíssimos naufrágios de portugueses? E depois de tantos perigos, depois de tantas desgraças, depois de tantas e tão lastimosas mortes, ou nas praias desertas sem sepultura, ou sepultados nas entranhas dos alarves, das feras, dos peixes, que as terras que assim ganhamos, as hajamos de perder assim? Oh! quanto melhor nos fora nunca conseguir nem intentar tais empresas!
Mais santo que nós era Josué, menos apurada tinha a paciência, e contudo, em ocasião semelhante, não falou — falando convosco — por diferente linguagem. Depois de os filhos de Israel passarem às terras ultramarinas do Jordão, como nós a estas, avançou parte do exército a dar assalto à cidade de Hai, a qual nos ecos do nome já parece que trazia o prognóstico do infeliz sucesso que os israelitas nela tiveram, porque foram rotos e desbaratados, posto que com menos mortos e feridos do que nós por cá costumamos. E que faria Josué à vista desta desgraça? Rasga as vestiduras imperiais, lança-se por terra, começa a clamar ao céu: Heu, Domine Deus, quid voluisti traducere populum istum Jordanem fluvium, ut traderes nos in manus Amorrhaei (Jos. 7,7)? Deus meu e Senhor meu, que é isto? Para que nos mandastes passar o Jordão, e nos metestes de posse destas terras, se aqui nos havíeis de entregar nas mãos dos amorreus, e perder-nos? Utinam mansissemus trans Jordanem! Oh! nunca nós passáramos tal rio! — Assim se queixava Josué a Deus, e assim nos podemos nós queixar, e com muito maior razão que ele. Se este havia de ser o fim de nossas navegações, se estas fortunas nos esperavam nas terras conquistadas: Utinam mansissemus trans Jordanem! Prouvera a vossa divina Majestade, que nunca saíramos de Portugal, nem fiáramos nossas vidas às ondas e aos ventos, nem conhecêramos ou puséramos os pés em terras estranhas. Ganhá-las para as não lograr desgraça foi, e não ventura; possui-las para as perder, castigo foi de vossa ira, Senhor, e não mercê nem favor de vossa liberalidade. Se determináveis dar estas mesmas terras aos piratas de Holanda, por que lhas não destes enquanto eram agrestes e incultas, senão agora? Tantos serviços vos tem feito esta gente pervertida e apóstata, que nos mandastes primeiro cá por seus aposentadores, para lhes lavrarmos as terras, para lhes edificarmos as cidades, e, depois de cultivadas e enriquecidas, lhas entregardes? Assim se hão de lograr os hereges e inimigos da fé dos trabalhos portugueses e dos suores católicos? En queis consevimus agros: Eis aqui para quem trabalhamos há tantos anos! — Mas, pois vós, Senhor, o quereis e ordenais assim, fazei o que fordes servido. Entregai aos holandeses o Brasil, entregai-lhes as Índias, entregai-lhes as Espanhas — que não são menos perigosas as conseqüências do Brasil perdido — entregai-lhes quanto temos e possuímos como já lhes entregastes tanta parte — ponde em suas mãos o mundo, e a nós, aos portugueses e espanhóis, deixai-nos, repudiai-nos, desfazei-nos, acabai-nos. Mas só digo e lembro a Vossa Majestade, Senhor, que estes mesmos, que agora desfavoreceis e lançais de vós, pode ser que os queirais algum dia, e que os não tenhais.

Não me atrevera a falar assim, se não tirara as palavras da boca de Jó que, como tão lastimado, não é muito entre muitas vezes nesta tragédia. Queixava-se o exemplo da paciência a Deus — que nos quer Deus sofridos, mas não insensíveis — queixava-se do tesão de suas penas, demandando e altercando porque se lhe não havia de remitir e afrouxar um pouco o rigor delas, e como a todas as réplicas e instâncias o Senhor se mostrasse inexorável, quando já não teve mais que dizer, concluiu assim: Ecce nunc in pulvene dormiam, et si mane me quoesieris, non subsistam (Jó 7,21): Já que não quereis, Senhor, desistir ou moderar o tormento, já que não quereis senão continuar o rigor, e chegar com ele ao cabo, seja muito embora, matai-me, consumi-me, enterrai-me: Ecce nunc in pulvere dormiam. Mas só vos digo e vos lembro uma coisa, que se me buscardes amanhã, que me não haveis de achar: Et si mane me quoesieris, non subsistam. Tereis aos sabeus, tereis aos caldeus, que sejam o roubo e o açoite de vossa casa, mas não achareis a um Jó que a sirva, não achareis a um Jó que a venere, não achareis a um Jó que, ainda com suas chagas, a não desautorize. — O mesmo digo eu, Senhor, que não é muito rompa nos mesmos afetos que se vê no mesmo estado. Abrasai, destruí, consumi-nos a todos; mas pode ser que algum dia queirais espanhóis e portugueses, e que os não acheis. Holanda vos dará os apostólicos conquistadores, que levem pelo mundo os estandartes da cruz; Holanda vos dará os pregadores evangélicos, que semeiem nas terras dos bárbaros a doutrina católica e a reguem com o próprio sangue; Holanda defenderá a verdade de vossos Sacramentos e a autoridade da Igreja Romana; Holanda edificará templos, Holanda levantará altares, Holanda consagrará sacerdotes, e oferecerá o sacrifício de vosso Santíssimo Corpo; Holanda, enfim, vos servirá e venerará tão religiosamente, como em Amsterdã, Meldeburg e Flisinga, e em todas as outras colônias daquele frio e alagado inferno, se está fazendo todos os dias.

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