Há pouco tempo, eu estava hospedado num resort em Ilhéus, onde faria uma conferência a um grupo de empresários de uma multinacional. Rodeado de simpatia, comidas e quitutes baianos, tendo pela frente as mais belas paisagens, tinha a sensação que o paraíso era aqui na Terra. Tranquilamente refestelado numa rede, ouço à distância uma gravação de um adagio barroco executado por uma clarineta. Aquela simples melodia, que sonorizava discretamente o ambiente, começou a me perturbar. Cheguei a ficar arrepiado. Passou-se algum tempo, eu diria meio a um minuto, até que eu me situasse e compreendesse o motivo daquele incômodo, daquele alvoroço emocional. Lembrei-me, primeiro, que aquela música era uma ária de uma ópera de Händel, depois, que eu a havia tocado ao violino quando tinha 15, 16 anos, numa de minhas primeiras apresentações públicas no bairro onde vivia. A igreja da Lapa paulistana havia adquirido um magnífico órgão de tubos e o padre permitiu que eu solasse algumas melodias na missa das 11 de domingo. A emoção foi enorme. Orgulhosamente eu desfilava com o violino pela nave da igreja e tinha a impressão que todos iam me aplaudir e que, a partir de então, poderia namorar qualquer menina do bairro...
Mas, o curioso dessa historieta, não é o fato de essa sensação ter ficado armazenada, sem que eu soubesse, por mais de 50 anos nas profundezas de minha alma, sensação essa despertada no momento e da maneira mais inusitados. O interessante, é aquele filete sonoro penetrar nos meus ouvidos, sem que eu o identificasse de imediato, chegar à minha alma, provocar um rebuliço emocional e só depois de algum tempo eu me dar conta do motivo. Ou seja, ocorreu uma relação direta, um diálogo do som com minha emoção e só mais tarde com a razão. É o inexplicável feitiço do som.
É fácil, portanto, compreender por quê não se tem notícias de uma civilização que não tenha cultivado a música. Sabe-se que o som, nas mais longínquas sociedades era usado para comunicação. Inicialmente através do simples uso da voz, depois percutindo objetos uns nos outros, em seguida esticando uma pele de animal num cilindro de madeira para criar um tambor, assoprando num tubo, aprendendo a manipular uma corda vibrando e assim por diante. Compreendendo esse poder mágico do som, imaginou-se que, através dele, pessoas poderiam ser influenciadas. Assim, ele passou a ter "utilidade". Com sua ajuda, motivou-se o ser humano ao trabalho, à guerra, ao amor pátrio, à religiosidade, à sensualidade, ao humor, a compreender uma narração dramática e assim por diante. Ainda hoje, em sociedades primitivas, a música é usada como objeto de utilidade comunitária. O músico brasileiro Egberto Gismonti fez, certa vez, uma experiência com nossos índios. Instalou-se no seio de uma tribo para conhecer sua música e costumes, afim de utilizá-los em um de seus projetos composicionais. Para estabelecer um dialogo com a comunidade, Egberto levou sua trupe, montou seus instrumentos eletrônicos numa taba e mostrou suas composições. Quando uma delas provocou interesse especial nos índios, eles se aproximaram dos instrumentistas e, tentando entendê-la, perguntavam insistentemente: "pra que serve isso aí?..."
Ainda nos dias atuais, mesmo em sociedades as mais civilizadas a música é muitas vezes associada à uma situação - como trilha sonora de um filme ou novela de TV, numa solenidade religiosa ou cívica - embora seja consumida, na maioria das vezes, como mero entretenimento auditivo.
Em sua historia, a organização dos sons em forma de música passou por várias transformações estruturais e diversas maneiras de relação com o ouvinte. Gostaria de citar três momentos e fatos, que considero os mais significativos, curiosamente todos tendo como epicentro a Itália. O primeiro deles, talvez o mais importante, se deu no séc. XI quando o ser humano, que tinha as composições musicais armazenadas em sua mente e as passava boca-a-boca a outras pessoas, se deu conta que elas poderiam ser colocadas num papel. Identificando uma lógica matemática nas figuras rítmicas e melódicas das canções, o monge Guido D'Arezzo criou figuras gráficas - notas, ritmos, claves, pentagramas, sinais, nomenclaturas - que as representavam em detalhe. Pela primeira vez a música sai da mente humana e se transforma num objeto palpável, fora dela. Assim, o compositor tendo as idéias materializadas diante de si, semelhante a um escultor ao manipular a argila, podia trabalhar nelas, transformá-las, desenvolve-las, corrigi-las, substituí-las, ampliá-las, guardá-las, retomá-las em outra época e assim por diante. Isso provocou uma incrível evolução técnica e artística na criação musical que não cessou até os dias atuais.
Com a leitura e execução dos símbolos sonoros, muitos músicos podiam também conhecer uma obra e executá-la imediata e conjuntamente. E mais. A composição pode ser enviada a intérpretes distantes, a outros países, sem que alguém precisasse ir lá cantarolar uma melodia no ouvido de um músico. Com isso, as idéias musicais se disseminaram com facilidade e rapidez por todo o continente europeu e pelo mundo sem a presença do autor. Uma verdadeira internet de papel...
Com isso, as composições se tornaram perenes pois ficavam documentadas. Quase tudo que se compôs antes da transformação da música em símbolos gráficos morreu. O que se criou a partir daí, permanece até os dias de hoje. Outra contribuição importante desse fato foi que, com isso, os autores saíram do anonimato, já que seus nomes vinham grafados ao lado de suas criações. Ou seja. No início do segundo milênio, nasce a figura do compositor. A escrita musical se transformou numa espécie de "planta" da música. Tão completa ela é em informações que os compositores passaram a analisar esse verdadeiro "DNA da composição" alheia para se auto-aperfeiçoarem, evoluírem, aprenderem novas técnicas ou não repetir o que outro já haviam feito antes. Bach mandava buscar partituras de Vivaldi, as transcrevia de várias maneiras a exaustão para assimilar o vigor da música instrumental dos italianos. Ainda hoje nos grande conservatórios do mundo e os melhores professores usam essa investigação da escrita como o melhor método de composição.
A mesma iluminada Itália foi o berço de outro fenômeno, que mudou a historia das artes, este de natureza estética, exatamente no período de passagem da chamada Idade Média para a Idade Moderna: a Renascença (séc. XIV ao XVI). Aí, em consequência dessa evolução das técnicas composicionais, o ser humano começou a contemplar a música independentemente de suas "funções". Ela deixava de ter apenas "utilidade" e passava a ser ouvida por sua beleza. Isso mesmo. Nesse momento foi descoberta a "música pura". Melhor dizendo, foi inventada a "beleza".
Como a maior parte da música mais elaborada era financiada pela igreja católica - aliás, data desse período a cisão entre uma chamada "música erudita" e "música popular" - os compositores eram requisitados para compor obras musicais para os ritos religiosos. As partes fixas da missa, por exemplo, que tinham textos que se repetiam em todas as solenidades (kyrie, gloria, credo, sanctus, benedictus e agnus dei), eram musicadas pelos compositores.
Com a evolução da cristalinidade e desenvoltura das vozes superpostas, que perfaziam harmonias e contrapontos belíssimos, a música começa a atrair cada vez mais os fieis às igrejas. Só que a Santa Sé passou a ter "ciúmes" do sucesso dos autores. Tinha ela a sensação que as pessoas iam a igreja para curtir o delírio sonoro, psicodélico, daquelas criações de Palestrina, Gesualdo ou Monteverdi e não para rezar. Depois de algum tempo chegaram a censurar os autores, obrigando-os a compor uma música "homofônica" - só de acordes sucessivos com textos paralelos em todas as vozes - para que os fieis se concentrassem no conteúdo das palavras da mensagem religiosa. Mas foi em vão. A A beleza musical disseminou-se por todo o Continente Europeu, em igrejas ou não, e o feitiço sonoro, independente de uma possível ligação com uma idéia extra-musical, triunfou - aliás, até hoje...
Um outro fenômeno ocorrido logo depois da Renascença, na mesma península, mudou mais uma vez o conceito de música. Foi o advento da música instrumental. Toda a beleza da expressão musical renascentista - religiosa ou profana - era essencialmente vocal. Os primitivos instrumentos que existiam até então e que eram proibidos de entrar nas igrejas, eram usados apenas para apoiar os efeitos vocais e, não raro, simplesmente dobrá-los. Em função da mesma evolução técnica, era desejo dos autores sofisticar mais os efeitos sonoros. A partir do séc. XVII até meados do séc. XVIII, no chamado período barroco, a música instrumental ganhou independência e linguagem própria. A música deixava de ser idealizada e interpretada pelo ser humano (sua própria voz) mas, criada em sua mente e executada por um instrumento artificialmente construído (a partir de então também nas igrejas).
O brilho instrumental a todos encantou. Construíram-se novos instrumentos de cordas, sopros e percussão. A agilidade do fraseado musical se desenvolveu de tal maneira que surgiu um verdadeiro virtuosismo de execução que seduzia as pessoas por seu malabarismo ao instrumento. A música deixava de ser feita apenas pelo timbre vocal mas por dezenas de instrumentos, de cores sonoras diversas. É claro que continuou-se compondo para vozes. A voz chegou a se destacar como solista em meio ao conjunto instrumental. Criou-se até uma dramaturgia sonora, a ópera, onde a voz se destaca. Mas a voz passou a ser considerada um "instrumento" a parte, com sua linguagem própria.
A partir do séc. XIX, no romantismo, com a utilização da música como veículo de expressão das emoções individuais, o virtuosismo instrumental foi cada vez mais solicitado. O solista, querendo exibir seus dotes, sua personalidade musical em público, elevou essa instrumentalidade ao máximo, às vezes ao nível de um espetáculo quase circense. Nesse período todos os instrumentos que conhecemos hoje evoluíram tecnicamente, criou-se o piano e a paleta sonora da música ocidental ficou rica e multicolorida, inclusive com a estruturação da orquestra sinfônica, que nos deu obras primas.
Na primeira metade do séc. XX explodiram todos os conceitos musicais existentes, criando-se mais "ismos" estilísticos em 50 anos que em 500 anteriores. E foi nesse deslumbrante séc. XX que um quarto elemento associou-se à prática musical: a gravação e veiculação eletrônica da música.
Se o símbolo gráfico impresso dispensava a presença do autor na execução musical, o registro sonoro e sua veiculação eletrônica, passaram a dispensar a presença também do interprete. E foi essa tecnologia moderna que conseguiu transformar aquele "feitiço sonoro" em impulsos eletrônicos, me transportar da tranqüilidade de um moderno resort para 50 anos atrás à pequena igreja da Lapa, sem perder a capacidade arrebatadora daquela simples melodia. Ainda bem que Händel, há 300 anos atrás, fez uso de uma moderna pena de ganso para registrá-la numa lâmina de linho, permitindo que aquele Largo sonorizasse o paradisíaco mar da Bahia e provocasse tumultos no coração de um desprevenido maestro...
Nenhum comentário:
Postar um comentário