sexta-feira, 14 de maio de 2010

Eichmann em Jerusalém [trecho], Hannah Arendt .

Assim sendo, eram muitas as oportunidades de Eichmann se sentir como Pôncio Pilatos, e à medida que passavam os meses e os anos, ele perdeu a necessidade de sentir fosse o que fosse. Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei.

Eichmann tinha uma vaga noção de que isso podia ser uma importante distinção, mas nem a defesa nem os juízes jamais insistiram com ele sobre isso. As moedas bem gastas das "ordens superiores" versus os "atos de Estado" circulavam livremente; haviam dominado toda a discussão desses assuntos durante os julgamentos de Nuremberg, pura e simplesmente por dar a ilusão de que algo absolutamente sem precedentes podia ser julgado de acordo com precedentes e seus padrões.

Eichmann, com seus dotes mentais bastante modestos, era certamente o último homem na sala de quem se podia esperar que viesse a desafiar essas idéias e agir por conta própria. Como além de cumprir aquilo que concebia como deveres de um cidadão respeitador das leis, ele também agia sob ordens — sempre o cuidado de estar "coberto" —, ele acabou completamente confuso e terminou frisando alternativamente as virtudes e os vícios da obediência cega, ou a "obediência cadavérica" [kadavergehorsam), como ele próprio a chamou.

A primeira indicação de que Eichmann tinha uma vaga noção de que havia mais coisas envolvidas nessa história toda do que a questão do soldado que cumpre ordens claramente criminosas em natureza e intenção apareceu no interrogatório da polícia, quando ele declarou, de repente, com grande ênfase, que tinha vivido toda a sua vida de acordo com os princípios morais de Kant e particularmente segundo a definição kantiana do dever. Isso era aparentemente ultrajante, e também incompreensível, uma vez que a filosofia moral de Kant está intimamente ligada à faculdade de juízo do homem, o que elimina a obediência cega.

O oficial interrogador não forçou esse ponto, mas o juiz Raveh, fosse por curiosidade, fosse por indignação pelo fato de Eichmann ter a ousadia de invocar o nome de Kant em relação a seus crimes, resolveu interrogar o acusado. E para surpresa de todos, Eichmann deu uma definição quase correta do imperativo categórico: "O que eu quis dizer com minha menção a Kant foi que o princípio de minha vontade deve ser sempre tal que possa se transformar no princípio de leis gerais" (o que não é o caso com roubo e assassinato, por exemplo, porque não é concebível que o ladrão e o assassino desejem viver num sistema legal que dê a outros o direito de roubá-los ou matá-los).

Depois de mais perguntas, acrescentou que lera a Crítica da razão pura, de Kant. E explicou que, a partir do momento em que fora encarregado de efetivar a Solução Final, deixara de viver segundo os princípios kantianos, que sabia disso e que se consolava com a idéia de que não era mais "senhor de seus próprios atos", de que era incapaz de "mudar qualquer coisa". O que não referiu à corte foi que "nesse período de crime legalizado pelo Estado", como ele mesmo disse, descartara a fórmula kantiana como algo não mais aplicável.

Ele distorcera seu teor para: aja como se o princípio de suas ações fosse o mesmo do legislador ou da legislação local — ou, na formulação de Hans Frank para o "imperativo categórico do Terceiro Reich", que Eichmann deve ter conhecido: "Aja de tal modo que o Führer, se souber de sua atitude, a aprove" (Die Technik des Staates, 1942, pp. 15-6). Kant, sem dúvida jamais pretendeu dizer nada desse tipo; ao contrário, para ele todo homem é um legislador no momento em que começa a agir: usando essa "razão prática" o homem encontra os princípios que poderiam e deveriam ser os princípios da lei.

Mas é verdade que a distorção inconsciente de Eichmann está de acordo com aquilo que ele próprio chamou de versão de Kant "para uso doméstico do homem comum". No uso doméstico, tudo o que resta do espírito de Kant é a exigência de que o homem faça mais que obedecer à lei, que vá além do.mero chamado da obediência e identifique sua própria vontade com o princípio que está por trás da lei — a fonte de onde brotou a lei.

Na filosofia de Kant, essa fonte é a razão prática; no uso doméstico que Eichmann faz dele, seria a vontade do Führer. Grande parte do minucioso empenho na execução da Solução Final — um empenho que geralmente atinge o observador como tipicamente alemão, ou característico do perfeito burocrata — pode ser atribuída à estranha noção, efetivamente muito comum na Alemanha, de que ser respeitador das leis significa não apenas obedecer às leis, mas agir como se fôssemos os legisladores da lei que obedecemos. Daí a convicção de que é preciso ir além do chamado do dever.

Seja qual for o papel de Kant na formação da mentalidade do "homem comum" da Alemanha, não existe a menor dúvida de que Eichmann efetivamente seguia os preceitos de Kant: uma lei era uma lei, não havia exceções. Em Jerusalém, ele admitiu apenas duas dessas exceções durante a época em que "80 milhões de alemães" tinham cada um o "seu judeu decente": ele havia ajudado um primo meio-judeu e um casal judeu em Viena por quem seu tio interviera.

Essa incoerência ainda o deixava um tanto incomodado, e quando foi interrogado a esse respeito, ficou abertamente apologético: ele havia "confessado seus pecados" a seus superiores. Essa atitude intransigente em relação ao desempenho de seus deveres assassinos condenou-o mais do que qualquer outra coisa aos olhos dos juizes, o que era compreensível, mas a seus próprios olhos era exatamente ela que o justificava, assim como antes silenciara a consciência que pudesse lhe restar. Sem exceções—essa era a prova de que ele havia agido sempre contra seus "pendores", fossem eles sentimentais ou inspirados por interesse, em prol do cumprimento do "dever".

Cumprir seu "dever" acabou fazendo com que entrasse em conflito aberto com as ordens de seus superiores. Durante o último ano da guerra, mais de dois anos depois da Conferência de Wannsee, ele experimentou sua última crise de consciência. Com a aproximação da derrota, ele se viu confrontado com homens de seu próprio escalão que lutavam mais e mais insistentemente por exceções e até pela cessação da Solução Final.

Foi o momento em que sua cautela se rompeu e ele começou, mais uma vez, a tomar iniciativas — por exemplo, ele organizou as marchas a pé dos judeus de Budapeste até a fronteira da Áustria depois que o bombardeio aliado arrasou com o sistema de transporte. Era o outono de 1944, e Eichmann sabia que Himmler havia ordenado o desmantelamento das instalações de extermínio em Auschwitz e que o jogo acabara. Por volta dessa época, Eichmann teve uma de suas raras entrevistas pessoais com Himmler, no curso da qual este último teria gritado para ele: "Se você até agora esteve ocupado liquidando judeus, de agora em diante, estou ordenando, vai cuidar muito bem dos judeus, vai ser enfermeira deles. Lembre-se que fui eu — e não o Gruppenführer MüUer ou você — que fundou o Rsha em 1933; sou eu que dou as ordens aqui!".

A única testemunha que poderia confirmar essas palavras era o suspeitíssimo sr. Kurt Becher; Eichmann negou que Himmler tivesse gritado com ele, mas não negou que essa entrevista aconteceu. Himmler não pode ter dito exatamente essas palavras, pois ele sabia que o rsha havia sido fundado em 1939 e não em 1933, e não só por ele, mas também por Heydrich, com seu endosso. Mesmo assim, algo desse tipo deve ter acontecido, porque Himmler estava nessa época dando ordens a torto e a direito para que tratasse bem os judeus — eles eram seu "investimento mais seguro" —, o que deve ter sido uma experiência chocante para Eichmann.

A última crise de consciência de Eichmann começou com suas missões na Hungria em março de 1944, quando o Exército Vermelho estava se movimentando nos montes Cárpatos em direção à fronteira húngara. A Hungria havia aderido à guerra do lado de Hitler em 1941, simplesmente a fim de receber mais alguns territórios dos países vizinhos — Eslováquia, Roménia e Iugoslávia.
O governo húngaro era abertamente anti-semita mesmo antes disso, e um instrumento da organização do assassinato em massa; mesmo assim resta o fato de você ter executado, e portanto apoiado ativa-mente, uma política de assassinato em massa. Pois política não é um jardim-de-infância; em política, obediência c apoio são a mesma coisa.

E, assim como você apoiou e executou uma política de não partilhar a Terra com o povo judeu e com o povo de diversas outras nações — como se você e seus superiores tivessem o direito de determinar quem devia e quem não devia habitar o mundo—.consideramos que ninguém, isto é, nenhum membro da raça humana, haverá de querer partilhar a Terra com você. Esta é a razão, e a única razão, pela qual você deve morrer na forca."

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