sábado, 16 de outubro de 2010

Pequenina reflexão amorosa.

Há aproximadamente 30 anos um filme causou tanto impacto que foi proibido em vários países: Le Bonheur (A felicidade), da francesa Agnès Varda. Conta a história de um casal feliz, com dois filhos pequenos, que costumava passar os domingos num belo parque.

Numa viagem de trabalho a uma cidade próxima, o marido conhece uma moça, por quem logo se apaixona. Começam um intenso relacionamento amoroso, entretanto, isso em nada afeta o casamento. Ele continua amando e desejando sua esposa, com a única diferença de se sentir mais pleno, com mais alegria de viver. Acostumado que estava a compartilhar com ela todos os aspectos da sua vida, num daqueles dias no parque, enquanto as crianças brincavam distantes e eles, abraçados, descansavam na relva, ele resolve contar o que está acontecendo.

Relatando com toda a sinceridade os fatos, afirma à sua atenta ouvinte que em nada ela foi prejudicada, pelo contrário, é como se numa macieira mais uma maçã tivesse nascido. Percebe estar podendo amá-la ainda mais, já que se sente mais feliz. Como de costume, fazem sexo e dormem. Na cena seguinte ouvem-se gritos vindos do lago. Ao acordar e não ver sua mulher ao lado, corre à procura dela. Chega a tempo de ver seu corpo sendo retirado. Naquele momento, procurando reconstituir em pensamento o que poderia ter ocorrido, imagina ela se afogando e, desesperada, tentando se agarrar a troncos de árvores para se salvar. Era tão verdadeiro o seu amor, que em momento algum passa pela sua cabeça o que de fato tinha acontecido: ela não suportou saber que ele amava outra mulher e se suicidara.

Na cena final ele e sua nova esposa, a antiga amante, passeiam alegres de mãos dadas, no mesmo parque com os filhos dele. Os moralistas não se conformaram. Afinal, para eles a transgressão de amar duas pessoas ao mesmo tempo merecia algum tipo de punição. Mas nada de mal acontece com o personagem e sua ausência total de culpa pela morte da mulher foi considerada inadmissível, tendo chocado muita gente.

O que poucos perceberam é que não havia mesmo motivos para culpa. O sofrimento vivido pela mulher, e que a levou a uma atitude tão desesperada, é que foi absurdo. O que estava ela perdendo? Absolutamente nada. Ao fazer com que todos acreditem ser impossível amar duas pessoas ao mesmo tempo, o modelo de amor imposto na nossa cultura torna inquestionável a conclusão: “se ele ama outra é porque não me ama”.

Contudo, não há dúvida de que podemos amar várias pessoas ao mesmo tempo. Não só filhos, irmãos e amigos, mas também aqueles com quem mantemos relacionamentos afetivo-sexuais. E podemos amar com a mesma intensidade, do mesmo jeito ou diferente. Acontece o tempo todo, mas ninguém gosta de admitir. A questão é que nos cobramos a rapidamente fazer uma opção, descartar uma pessoa em benefício da outra, embora essa atitude costume vir acompanhada de muitas dúvidas e conflitos.

Mas afinal, por que se tem tanto medo de amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo? O terapeuta José Ângelo Gaiarsa afirma que “somos por tradição sagrada tão miseráveis de sentimentos amorosos que havendo um já nos sentimos mais do que milionários, e renunciamos com demasiada facilidade a qualquer outro prêmio lotérico (do amor)”. E essa mesquinharia afetiva se desenvolveu a partir da crença de que somente através da relação amorosa estável com uma única pessoa é que vamos nos sentir completos e livres da sensação de desamparo. Não é à toa que exigimos que o outro seja tudo para nós e nos esforçamos para ser tudo para ele. Mesmo à custa do empobrecimento da nossa própria vida.


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