sábado, 9 de outubro de 2010

Lennon rindo, Paulo Leminski [trecho]


A Spaniard In The Works, publicado em 1965, estranhas miscelâneas de textos de natureza vária,flash-contos, esboços de peças, poemasnonsense, acompanhados de desenhos, todos marcados por extrema criatividade de linguagem, conduzida ao absurdo por um humor sarcástico e cínico.

Quando os escreveu, John estava à frente de uma banda inglesa derock, os Quarrymen, agora The Beatles, trocadilho que ele inventou, montandobeetles, “besouros”, em inglês, combeat, “batida de percussão”, e, certamente, beat generation, beatniks.

Nesse momento, Lennon recebia, direta e pessoalmente, o impacto da criatividade de Bob Dylan, músico, escritor e desenhista como ele.

Com Dylan, um judeu novayorquino muito mais sofisticado intelectualmente que ele, John aprendeu isso e as coisas, “ouvindo Dylan, descobri que letra de música não precisa ser papo furado”, confessou o beatle que, no princípio, assinava letras que diziam apenas “I Want To Hold Your Hand” ou “She Loves You”.

Estava a caminho, e no bom caminho, o poeta que ia fazer, a seguir, a maior parte das letras e versos dos LPs Rubber Soul, Revolver, Abbey Road, e, sobretudo de Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band. E, daí, partiria para o vôo solitário de Imagine, Mind Games, até o maravilhoso e fatídico Double Fantasy.

Lennon foi figura de proa numa geração que produziu, entre os músicos populares, algumas de suas melhores cabeças (Dylan, Zappa, Jim Morrison, Bob Marley; no Brasil, Caetano Veloso, Gilberto Gil; e no mundo?), músicos e ao mesmo tempo, pensadores da coisa da cultura, ligados ao sentido das transformações, artistas abertos a outras artes, agitadores culturais, bons de som, de poesia e de conceito.


Os dois livros dobeatle ocupam lugar especial no quadro da criação textual da segunda metade do século XX. Pela linguagem, seus textos remetem a James Joyce, o mais radical dos prosadores do século, o Joyce das inovações de Ulysses e das montagens de palavras do Finnegans Wake. Assim que saíram, os livros de Lennon foram traduzidos para várias línguas. E consta até que, na Finlândia, traduziu-os o próprio tradutor finlândes de Ulysses.

O “walrus”, porém, declarou que, quando os escreveu, não conhecia Joyce. Sua fonte maior de influência era o Lewis Carrol, da Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho, influência fundamental sobre Joyce.

A ser verdade essa declaração, Lennon saiu da mesma fonte do pai do Wake.

Daquele bizarro professor de matemática que gostava de fotografar menininhas, tinha o estranho hábito de acasalar palavras em híbridos que chamou de portmanteau words, palavras-valise, palavras-montagem. E escrevia como se fosse o senhor de todas as lógicas.

O humor da linguagem, traço muito inglês de Lennon e o grande obstáculo para o tradutor, depende de alguns recursos- chave. Principalmente, o estranhamento do lugar-comum através da alteração da expressão idiomática. Mas também através do bizarro e do inesperado na lógica ficcional.

Além disso, John é muito chegado numa de alterar, a seu babel prazer, a grafia das palavras, criança que estivesse brincando de grudar uma letra, ou tirar, ou trocar as letras das palavras. Este efeito, no humor televisivo brasileiro, é a especialidade de Renato Aragão, o maior palhaço brasileiro vivo, exímio em arrancar as gargalhadas que se dá diante da informação nova, com uma alteração arbitrária do modo de dizer as palavras, graça fonética do Didi dos Trapalhões.
Como amostra de estranhamento do lugar-comum, valha o próprio título dos dois livros de Lennon. No primeiro, Lennon On His Own Write, acontece a superposição de duas expressões: “in his own right”, no seu direito, e “in his own writting”, com seu próprio punho, montagem que procurei traduzir para “Lennon Com Sua Própria Letra”. No segundo, o jogo é ainda mais complexo: A Spaniard In The Works, “Um Espanhol Nas Obras”, é, na realidade, uma corruptela da expressão idiomática “a spanner in the works”, ao pé da letra, “uma chave-de-fenda nos mecanismos”, mas que designa uma dificuldade súbita, um obstáculo que não estava nos planos. Alguma coisa que tem que ver com as origens da palavra francesasabotage. Em francês, sabot é “tamanco”. E sabotar, na origem, é “jogar um tamanco para danificar o mecanismo de uma máquina”. Tanto a expressão inglesa “a spanner in the works”, quanto a sabotagem francesa pertencem ao mundo da Revolução Industrial, e trazem conotações de luta de classes, “ludditas”, entre operários, os patrões e suas máquinas.

“A spanner in the works”: (botar) Formiga no Pudim (de alguém), uma mosca na sopa, por essa você não esperava, uma pedra no caminho?

Alice Ruiz, por fim, me tirou do impasse, propondo o imbatível (unbeatable!) Um Atrapalho no Trabalho.

O específico do discurso de Lennon parece ser uma subversão sistemática dos códigos de registro da escritura, bem dentro do juvenil espírito de quebra-quebra que caracterizou os anos 60.

John não escreve errado: ele, moleque, escreve “erros”. E subverte a grafia dos vocábulos, introduzindo neles ruídos arbitrários, grafitti, deformando agestal t ortográfica das palavras deixando subsentidos se infiltrarem pelos interstícios das frases. Uma escrita “fria”, nos termos de MacLuhan, uma escrita porosa, como a TV, que convida à participação.

Em Um Atrapalho no Trabalho, prosa-pop, prosa da era da TV, do VT clips, VTVTTVTVTVVTTT & tc, arte de arte, obe atle faz gato e sapato das receitas de todos os gêneros, excomunga os lugares-comuns. E, trapalhão, atrapalha todo o andamento do trabalho: uma gota da baba de Dadá, no comportamento textual do “Working Class Hero”.

Nenhuma fórmula verbal escapa da verve cínica e sarcástica daquele que escandalizou o mundo ao dizer, “somos mais populares que Jesus Cristo”.

O conto. A anedota. O poema. A estória da carochinha. De detetive. A peça de teatro. A carta do leitor. A entrevista. O anúncio. A frase de TV. A notícia de jornal. A canção de ninar. Um Atrapalho é caleidoscópio de todas as formas verbais imagináveis, erodidas e erotizadas como paródia.

Mas o humor do “Nowhere Man” não é um bom humor.

É a graça que nasce do azedume (não há sexo na prosa de Lennon).

Em suas fulminantes anedotas, sempre tendentes a estados caógenos, crepusculares, na fronteira entre o inteligível e o ininteligível (“Dividido Davi”, “Os Famosos Cinco Através das Ruínas de E agora”, “Linda Linda Cremilda”, “Mr. Boris Norris”, “Elerico e Eurique”), o desfecho é sempre trágico ou melancólico, com toques às vezes sádicos e mórbidos, teratológicos.

O beatle máximo era, hoje sabemos, um “maior abandonado”, aquela pessoa profundamente insegura, poço de angústias, atingida no coração e na cabeça pela súbita idolatria mundial em escala nunca vista.

Um comentário:

Wanderley disse...

Cara, tava exatamente procurando algo sobre esse, ou esses escritos do John e você publicou ontem! Valeu, abraço!

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