sábado, 6 de março de 2010

Sínteses da síncope de um João.


Turíbio Santos, um dos mais importantes violonistas brasileiros, descreve que uma das experiências mais curiosas que teve foi tentar acompanhar João Gilberto: “Não foi com ele ao vivo. Na realidade foi acompanhar uma gravação do cantor. Do tipo passo a passo. Vamos imaginar você seguindo as pegadas de alguém na areia e colocando seus passos exatamente em cima dos passos da pessoa seguida. Assim, descobri primeiro a harmonia do João. Precisa, impecável, com soluções indiscutíveis. Trabalho de ourives. Depois desvendei (ou tentei) o ritmo. Os problemas foram se complicando. A invenção do João é imbatível e o pior: sua execução é de uma perfeição que beira as raias do impossível. Maior surpresa ainda: ele extrai mensagens polifônicas (várias vozes) do seu violão, como se cada corda fosse tocada por um instrumentista diferente”.

O maestro e pesquisador da obra de João Gilberto, Aderbal Duarte, completa: “João sintetizou no seu violão várias sonoridades brasileiras, dos graves do violão de sete cordas aos agudos do cavaquinho”. E para complicar a coisa um pouco mais, ele afirma que "não existe uma batida de João, mas várias batidas. É possível isolar quatro ou cinco mais importantes, reincidentes. Mas muitas vezes ele usa pedaços delas. Então, o que há são células rítmicas".

O músico e professor Lucas Robatto afirma, com base na pesquisa do maestro Aderbal Duarte, que a estética vocal de João Gilberto “baseia-se primordialmente na adaptação da música às capacidades vocais naturais do intérprete. João nunca força sua voz (nem no que se refere ao registro – grave ou agudo, nem ao volume). Ele aproxima o máximo possível o canto da voz falada – diferentemente da voz ‘empostada’ do canto lírico. João modifica as tonalidades originais das músicas que interpreta para permitir a adaptação ao seu registro vocal”.
Ainda segundo Robatto, “qualquer pessoa que tenha tentado cantar uma melodia junto com João Gilberto deve ter percebido que isto não é uma tarefa simples”. Para ele, isso acontece porque o artista faz uma condução melódica livre, adiantando-a ou a atrasando, com o objetivo de aproximar o ritmo da canção do da linguagem falada, mesmo quando isso significa fugir ao da melodia original.

Para Edinha Diniz, pesquisadora da música de João Gilberto, inúmeras outras contribuições devem ser ainda destacadas na obra do artista: “reduzir a bossa nova à batida é simplificá-la e engessá-la. É deixar de fora a sonoridade nova e original, a polirritmia voz/violão, os deslocamentos de acordes na sua novidade harmônica, a sincronização excepcional, o moto-contínuo, o pedal, o fraseado entre os acordes, a mixagem voz/violão, o som atuando sobre o tempo, o legato, a declinação do swing e mais e mais e mais inúmeros elementos que fazem com que ouvir o som de João Gilberto seja uma experiência estética única”, diz ela.

Longe de se esgotarem as possibilidades de análise teórica sobre a obra de João Gilberto, elas apenas parecem reforçar a complexidade da sua contribuição. Músico que, com seu projeto pessoal de inovação, conseguiu criar uma estética que se tornou universal. Mas, que, antes de tudo, continua a sensibilizar várias gerações para o prazer de ouvir música brasileira, como bem resume o escritor e compositor Nelson Motta: “em 1959, João Gilberto era um sucesso nacional, era adorado e detestado, acusado de desafinado e de afeminado, celebrado como o inventor de um novo gênero musical. Eu o ouvia apaixonadamente como o criador de uma maneira nova de cantar e tocar, com um mínimo de voz e um máximo de precisão, com harmonias e ritmos que refinavam e sofisticavam qualquer canção”.

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