quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Liberdade de Expressão, Alberto Lins Caldas.

tenho me engajado a vida inteira na luta e na defesa da liberdade. aqui pretendo falar daquela liberdade que deve ser completa, total, absoluta: a de pensar, falar, imaginar e escrever definitivamente tudo sem que nada impeça, nada proíba; nada censure, nada se interponha, nada reverta ou abale; nada torture ou aprisione. que tudo responda, mas que nada rasgue, queime, impossibilite, processe, violente, mude, refaça, esconda, ameace.

e pensar isso e assim nesse país infeliz (não que haja países felizes) que carrega o fascismo como corpo e alma, como história e memória, como cotidiano e crença, é pedir demais. uma das loucuras aceitas como normalidade é o “delito de opinião”, que permite processar os que escrevem, como se isso fosse a maior conquista do mundo. em nome de todos os bons conceitos, das boas idéias, do reto caminho todos renunciam a liberdade, justificam a censura em todas as suas sutis formas, o corte, o processo, a perseguição, a imposição. outra é a “apologia ao crime”, como se defender qualquer forma de crime, de delito, de horror reproduzisse magicamente esse horror, como se fossem todos imbecis que não podem nem conseguem discernir nada. e quem “omite opinião” é processado, preso e perseguido, e isso não é visto como o maior dos horrores, uma brutalidade.

nada, absolutamente nada do que é ou pode ou já foi escrito é mais abominável que as ações contra o escrito, o pensado, o desejado, o dito, o visto. tudo, absolutamente tudo, pode e deve ser dito, ser escrito, ser transformado em imagem, em som, em algo manipulável. nossa função é defender essa forma absoluta de liberdade e a sua também absoluta resposta e lutar contra o abominável que foi escrito, pensado, falado, filmado, mas jamais proibir. a luta se faz entre as escritas, entre falas sem proibir nenhuma delas e possibilitando a todas elas a igualdade de condições e de divulgação.

defender, propagar, expor todas as formas de exploração como se fizesse o bem, os apartáides, todos os nazismos, todas as formas de terrorismo, a pedofilia, a proibição de livros e idéias, as chacinas, os massacres, as perseguições, as torturas, as humilhações, as intervenções, as desproteções, as dormências, os conformismos, os genocídios, as repressão, o terror, os racismos, as homofobias, os machismos: - são absolutamente detestáveis, ridículas e monstruosas, mas devem ter o direito de serem ditos. como ações e palavras não são iguais, devem ser combatidas enquanto idéias e enquanto ações por poderes e forças diferentes. palavras contra palavras, ações contra ações. não se pune um pedófilo por ser pedófilo em idéias, em propagar a pedofilia, mas por ser pedófilo, por praticar de alguma maneira a pedofilia: numa dimensão ele deve ser absolutamente livre, na outra a lei cuida dele, a “comunidade” põe sua existência em cheque. que suas idéias são monstruosas ou não, a decisão cabe ao leitor, ao ouvinte, ao telespectador, ao cidadão, não a lei ou ao estado. ou o monstro seremos nós os que destruímos suas palavras e seu direito inalienável de dizer. por eles serem monstros não serei também censurando por aquilo que me faz diferente deles e eticamente capaz de lutar contra eles. luto contra eles, e devemos lutar sempre contra eles, mas devemos também e com o mesmo ardor defender seu direito de dizer e o pleno direito dos “leitores” discernirem, escolherem, usando sua vida e sua consciência plenamente, sem que algo externo diga o que deve ouvir ou não ouvir, ler ou não ler, ver ou não ver, escolher ou não escolher: devo ser livre para escolher ou não o abominável, sem que ele seja retirado violentamente dos meus sentidos, do meu corpo, da minha consciência, da minha convivência como se fossemos “débeis mentais”, “escravos” ou “crianças”: eu devo escolher, eu posso escolher, eu luto para escolher, eu sou escolha. não pode ser a polícia, o exército, a tradição, o mercado, a mídia, os intelectuais, o partido, o bom gosto, o bom tom, a justiça, o estado, o síndico, o sacerdote, o prefeito, o censor, o professor, o pai: precisamos aprender a conviver com a diferença e com a liberdade que essa diferença exige. a tolerância absoluta é ao “escrito” (ficção de convicção), jamais ao intolerável que, se exercendo, destrói essa liberdade e outras que são essenciais.
tudo dizer, tudo escrever, tudo ouvir, tudo ver, tudo escrever, tudo ouvir, tudo pensar tem como correlato a luta obsessiva contra as múltiplas barbáries que transformam tudo em mercadoria, em cinzas ou numa perversa violência sem fim. nada pode ser íntegro, intocável; nada deve sair ileso; nada é sagrado, nada é puro; nenhuma idéia, nenhum nome, nenhuma relação, nenhuma crença, nenhuma noção, nenhum deus, nenhuma gramática, nenhum costume, nenhum corpo, nenhuma cor, nenhuma memória, nenhum desejo, nada pode escapar ao ridículo, à crítica, ao escracho, ao escárnio, a dissolução, ao direito de ser exposto, comparado, diminuído, posto na sua devida estatura.

o que não resiste, não se agüenta, o que chama a polícia, a justiça, os amigos, os capangas, o exército é porque não vale a pena. se valesse a pena responderia a altura, lutaria com as mesmas armas, sem impor sua evidência de poder sem contestação, sua evidência monstruosa. como clama os poderes se esvazia de valor, de verdade, comungando com tudo aquilo que impõe sombras, violência e mercadoria como horizonte único.

a liberdade de expressão é o espírito vivo da palavra, do diálogo, da linguagem, da comunicação, da possibilidade viva de convivência e superação, mas não quer dizer aceitação, aprovação, chancela de tudo. é exatamente por viver a diferença que posso e devo aceitar plenamente a “apologia ao crime” e lutar veementemente contra o crime, que não foi criado nem se difunde pela “apologia”: punir a "apologia ao crime" é maior e mais danoso que qualquer crime: é o crime fundamental.

a liberdade de expressão devolve ou recria na linguagem sua dimensão humana, seu poder poético, sua missão política e revigora ela enquanto aquilo que gera e mantém o próprio real. não é a toa que no brasil a palavra sempre teve donos, sempre foi vigiada, sempre fez parte de sistemas de permissão e proibição, sempre foi propriedade privada, sempre foi fazenda e fábrica, sempre se colou à moral, à imagem, aos bons costumes, à pessoa: sem a garantia da palavra, sem a palavra garantida e protegida, grande parte das crenças estúpidas e fascistas dos brasileiros se desmoraliza e sua situação de dependência aparece.

entre os brasileiros a palavra deve, precisa inapelavelmente ser tutelada, protegida, abrigada, brindada; o indivíduo não pode estar só diante da tempestade do dizer: é preciso chamar o rei, a lei, todas as formas de poder para proteger ele da parrhesia dos trágicos cínicos, a liberdade de linguagem, a liberdade de falar francamente a sua verdade sem mediações permitidoras ou censoras. o dizer numa dimensão ética plena e, nessa dimensão, ser defendida não somente pelos indivíduos, mas pela própria polis enquanto condição democrática de sua existência. essa palavra tutelada dos brasileiros torna eles eternamente infantis, recorrendo sempre ao papai quando sua imagem é atingida, quando sua vida é exposta, quando sua moral é danificada: são incapazes de dizer de volta e na medida, incapazes de rejeitar a palavra sem o apoio do rei ou da lei: são castrados ao castrarem com a lei e com o rei. ao não enfrentarem as tempestades das palavras além de se tornarem fracos, fortalecem as tempestades viciadas, os nazismos e todas as formas monstruosas das palavras. ao buscarem a verdade com a força se enfraquecem e a verdade e o direito somem. todos são "senhores de engenho", intocáveis em sua imagem, sua moral e história: o senhor ainda está colado nas costas do brasileiro até quando ele pensa "defender os seus direitos".

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