terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Clarice Lispector encontra Tom Jobim.

Tom Jobim foi o meu padrinho no I Festival de Escritores, não lembro em que ano, no lançamento de meu romance "A maçã no escuro". E na nossa barraca ele fazia brincadeiras: segurava o livro na mão e perguntava:

- Quem compra? Quem quer comprar?

Não sei, mas o fato é que vendi todos os exemplares.

Um dia, faz algum tempo, Tom veio me visitar: há anos que não nos víamos. Era o mesmo Tom: bonito, simpático, com o ar de pureza que ele tem, com os cabelos meio caídos na testa. Um uísque e conversa que foi ficando mais séria. Reproduzirei literalmente nossos diálogos (tomei notas, ele não se incomodou).

- Tom, como é que você encara o problema da maturidade?

- Tem um verso do Drummond que diz: "A madureza, esta horrível prenda..." Não sei Clarice, a gente fica mais capaz, mas também mais exigente.

- Não faz mal, a gente exige bem.

- Com a maturidade, a gente passa a ter consciência de uma série de coisas que antes não tinha, mesmo os instintos, os mais espontâneos passam pelo filtro. A polícia do espaço está presente, essa polícia que é a verdadeira polícia da gente. Tenho notado que a música vem mudando com os meios de divulgação, com a preguiça de se ir ao Teatro Municipal. Quero te fazer esta pergunta a respeito da leitura de livros, pois hoje em dia estão ouvindo televisão e rádio de pilha, meios inadequados. Tudo o que escrevi de erudito e mais sério fica na gaveta. Que não haja mal-entendido: a música popular, considero-a seríssima. Será que hoje em dia as pessoas estão lendo como eu lia quando garoto, tendo o hábito de ir para a cama com um livro antes de dormir? Porque sinto uma espécie de falta de tempo da humanidade - o que vai entrar mesmo é a leitura dinâmica. Que é que você acha?

- Sofro se isso acontecer, que alguém leia meus livros apenas no método do vira-depressa-a-página dinâmico. Escrevi-os com amor, atenção, dor e pesquisa e queria de volta como mínimo uma atenção completa. Uma atenção e um interesse como o seu, Tom. E no entanto o cômico é que eu não tenho mais paciência de ler ficção.

- Mas aí você está se negando, Clarice!

- Não, meus livros, felizmente para mim, não são superlotados de fatos, e sim da repercussão dos fatos no indivíduo. Há quem diga que a música e a literatura vão acabar. Sabe quem disse isso? Henry Miller. Não sei se ele queria dizer para já ou para daqui a 300 ou 500 anos. Mas eu acho que nunca acabarão.

Riso feliz de Tom:

- Pois eu, sabe, também acho!
- Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita é como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal.

- E mineral também, e vegetal também! (Ele ri.) Acho que sou um músico que acredita em palavras. Li ontem o teu O búfalo e A imitação da rosa.

- Sim, mas é a morte às vezes.

- A morte não existe, Clarice. Tive uma experiência que me revelou isso. Assim como também não existe o eu nem o euzinho nem o euzão. Fora essa experiência que não vou contar, temo a morte 24 horas por dia. A morte do eu, eu te juro, Clarice, porque eu vi.

- Você acredita na reencarnação?

- Não sei. Dizem os hindus que só entende de reencarnação quem tem consciência das várias vidas que viveu. Evidentemente, não é o meu ponto de vista: se existe reencarnação, só pode ser por um despojamento.

Dei-lhe então a epígrafe de um de meus livros: é uma frase de Bernard Berenson, crítico de arte: "Uma vida completa talvez seja aquela que termina em tal identificação com o não-eu que não resta um eu para morrer."

- Isto é muito bonito - disse Tom - é o despojamento; Caí numa armadilha porque sem o eu, eu me neguei. Se nos negamos qualquer passagem de um eu para outro, o que significa reencarnação, então a estamos negando.

- Não estou entendendo nada do que estamos falando mas faz sentido. Como podemos falar do que não entendemos! Vamos ver se na próxima reencarnação nós dois nos encontraremos.

3 de julho de 1971

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