O Neoconcretismo não abandona o quadro num gesto contra a pintura mas, ao contrário, por radicalizar a exigência de que a pintura seja imanente. Ou seja, a pintura em si dispensa o enquadramento e o espaço da representação ou espaço virtual que é também o espaço da composição. Para Hélio Oiticica, o fim do quadro, "longe de ser a morte da pintura, é a sua salvação, pois a morte mesmo seria a continuar o quadro como tal, e como 'suporte' da pintura (...). A pintura teria que sair para o espaço”. É o que faz o Relevo Espacial, que o próprio Hélio já qualificava de estrutura-cor.
O Parangolé leva às últimas conseqüências a libertação da pintura de seus antigos liames. Como se sabe trata-se de uma espécie de capa (lembra ainda bandeira, estandarte, tenda) que não desfralda plenamente à luz sua imagem de uma miríade de tons, cores, formas, texturas ou grafismos senão a partir dos movimentos -- da dança -- de alguém que a vista. "O ato de vestir a obra já implica uma transmutação expressivo-corporal do espectador, característica primordial da dança, sua primeira condição”. A dança de quem veste o Parangolé não apenas o revela ao espectador que não o veste mas, sobretudo, ao dançarino mesmo. Na verdade, o dançarino se mostra ao dançar. Desaparece, assim, a separação tradicional entre o sujeito e o objeto da contemplação, a obra. O Parangolé em si constitui apenas o fecho do círculo, ou melhor, na bela expressão de Haroldo de Campos, o ponto de confluência em que o dançarino admira a própria dança.
Trata-se de uma dança narcísica. Mas quem é Narciso? Narciso é o ser ou estar que prova e aprova a si próprio. Narciso é a instância do ser ou estar que prova e aprova o próprio ser ou estar. A dança do Parangolé - o agora pelo agora - não tem necessidade de transcendência para se afirmar.
Assim, a superação do quadro em nome da pintura - um momento da qual é o Parangolé - acabou resultando: (a) no fim da própria pintura, que, enquanto objeto em si, deixa de existir; (b) no fim, pela mesma razão, da obra em si; e (c) no fim da arte em si, isto é, separada do fruidor ou do criador; em suma, da vida. "Aqui no Rio, o que caracterizou basicamente a produção, dizia Lygia Pape sobre os neoconcretistas, foi a quebra das categorias. De repente, pintura não era mais pintura, poesia não era poesia e começaram a se misturar as linguagens”.
Digamos, de passagem, que isso não se deu apenas no Rio. O Rio neoconcreto foi apenas um dos caminhos originais - um caminho construtivista - pelos quais o moderno chegou às últimas consequências na busca da arte enquanto arte e produziu a antiarte. Há outros. O próprio termo “antiarte”, por exemplo, surgiu no meio Dada. Os ready-made constituem exemplos de antiarte. Action painting, em suas últimas consequências, e arte conceitual são outros que vêm de diferentes tradições da pintura. Podemos dizer esquematicamente, que a variante duchampiana, partindo de uma forte reação contra a pintura retiniana, se caracteriza por uma atitude lúdico-intelectual (que conduz à antiarte por um curto-circuito conceitual) enquanto o caminho de Hélio Oiticica tende a ser lúdico-sensual.
Mas a antiarte será um fenômeno pós-moderno, como queria, por exemplo, Mário Pedrosa? Ela certamente rompe com a arte moderna que a precede. Romper com a tradição moderna, porém, é o que todo moderno parece sempre ter feito. O Parangolé, a "antiarte por excelência" para o próprio Hélio, se insere perfeitamente no que é conhecido como a tradição da ruptura. "O que o movimento neoconcreto faz", diz Ferreira Gullar, é levar às últimas conseqüências o que está implícito na experiência anterior do cubismo, do suprematismo, do neoplasticismo, de tudo isso que se encaminhou para algum ponto".
Mas então podemos nos perguntar: que acontece uma vez atingido esse ponto para onde convergiu todo o moderno? Se o moderno se caracterizava pela tradição da ruptura, queremos saber o que acontece quando ele rompe até com essa tradição, isto é, quando já chegou aonde queria e não tem mais caminhos a percorrer nem, ante si, tradições intactas. Que acontece quando já não há necessidade nem de heroísmo nem de marginalidade? Será que, quando não há mais necessidade de vanguarda, como hoje, já não saímos do moderno para entrar em outra coisa?
Acontece que o moderno não é em primeiro lugar a tal tradição da ruptura. Esta constitui apenas o lado negativo da manifestação do poder criativo do agora. À destruição das convenções pela vanguarda correspondiam, no polo positivo, novas fantasias, novas invenções, novos exercícios da criatividade. O próprio Parangolé é um exemplo disso. É essa afirmação do poder do agora - que, quando ainda há formas tradicionais fetichizadas, choca-se com elas - o aspecto positivo fundamental do moderno. É nisso que ele difere do não-moderno.
O homem arcaico, por exemplo, somente faz o que "já foi feito", ensina-nos Mircea Eliade. "A vida dele é a repetição ininterrupta de gestos inaugurados por outros".7 Se o passado perfeito (ou às vezes o futuro perfeito, isto é escatológico), dimensão ausente do tempo, é constitutivo para o homem arcaico, para o homem moderno dá-se algo muito diferente. Ele considera a sua própria atualidade, o seu agora, como a única essência. Ora, o agora é tanto mais agora quanto difere do passado. A própria palavra "moderno", como se sabe, vem do advérbio latino "modo", que quer dizer agora mesmo. "Moderno", relativo a agora, consiste, portanto, em um universal, como o próprio "agora". Moderna se diz a época que não se define, ao contrário de outras épocas, por um nome próprio que o passado lhe tenha atribuído, a época que não se define. Assim como o agora somente pode ser superado por outro agora, o moderno somente pode ser superado por outro moderno. É por essa simples razão que não se pode consistentemente empregar o termo "pós-moderno" nem aqui nem em nenhum outro contexto.
Assim, o que a antiarte e toda vanguarda realizaram foram exatamente as últimas conseqüências do moderno. Se quisermos, por isso, opor nossa época àquela em que a vanguarda ainda se encaminhava para este ponto em que nos encontramos, podemos chamar a nossa época não de pós mas de supermoderna. Destarte, a criatividade não tem preferência maior pela pintura ou por qualquer forma convencional, mas pode tanto criar novas formas como usar qualquer das formas - novas ou antigas, desta ou daquela cultura, de caráter "estético" ou não - disponíveis. Nessa situação constituem evidentes tolices as repetitivas queixas que se fazem ouvir no sentido de que hoje não haveria mais "grande pintura" ou de que não se produziriam mais tantas "obras-primas" ou de que não surgiriam mais tantos "gênios" quanto "antigamente". A pintura de fato perdeu a ilusão de que sua aura lhe pertencia por direito divino, mas provou-se que a fonte de toda aura, de todo encantamento, de todo direito e de todo divino é a boca mesmo do agora.
Desfez-se também, por exemplo, a ilusão de que haja critérios objetivos" ou mesmo consensuais para a seleção das obras que figurarão em uma mostra qualquer de arte. Todas as escolhas são (mas sempre foram sem o saber) autorais. Mas não é melhor que, de fato, cada qual assine as escolhas que faz, em lugar de falsamente imputá-las a qualquer tipo de "objetividade"?
O fato é que jamais a tantos, em qualquer outra época, foi possível tanta experiência de liberdade ou ambição de criar. Evidentemente, o medo dessa liberdade e a frustração dessa ambição também se espalharam pelo mundo, produzindo o pessimismo vulgar que caracteriza o senso comum jornalístico de nossa época. Mas a verdade deve ser também dita: a vanguarda chegou à sua conclusão, isto é, deu certo.